Abu Ghraib International Dance Festival
"SULREAL – Por uma epistemologia sul (towards a south epistemology)" são os dizeres da capa do livro, que é ilustrada com uma “citação” de um anúncio da famosa ONG Greenpeace: acima da linha do horizonte, um bloco de gelo, um iceberg (o Titanic não aparece, deve estar a caminho ou já afundou; no anúncio da ONG é um deserto com um único toco de árvore motosserrada) e, abaixo, como se enraizada no iceberg e de cabeça para baixo, uma árvore frondosa (no anúncio é uma árvore seca). Não é pouca coisa, trata-se de um livro de 168 páginas, bilíngüe (portuguese and english), denso de textos “investigativos”, herméticos e de alta erudição, ilustrado com muitas fotografias, coloridas e P&B. Pelo menos, desta vez não usaram o famigerado e brilhoso papel couché, como sói acontecer com publicações chiques e bem patrocinadas ultimamente. Incontáveis logomarcas de patrocinadores locais, nacionais e multinacionais, de toda ordem – desde o restaurante da esquina até gigantes como Petrobrás, Usiminas e outras de telefonia, aviação, etc –, populam a última capa e algumas páginas do miolo. Todos os cofres da viúva (erário) foram empenhados: leis de incentivo cultural federal, estadual e municipal chacelam a preciosidade, lado a lado, com respectivas logomarcas.
Surreal! O trocadilho não é nosso; em espanhol seria surreal mesmo. Se a proposta era a da sugestão ao surrealismo, aí não funcionou, a não ser que se entenda por surrealismo qualquer coisa de anormal, inusitado, alienado ou fora de órbita. Mas, estamos falando de arte – arte da dança! – e, neste campo, o surrealismo tem definições bem mais claras e precisas; é preciso ter cuidado com as palavras.
Trata-se, leitor, não fique pasmo, do Fórum Internacional de Dança... de BH, a capital das alterosas, na província de Minas Gerais. Assina-se fid.bh.mg.brasil.20.08, apesar de não ser um endereço na Internet. Aqui na terra, simplesmente FID. Sim, temos também o FIT, o de teatro, sobre o qual a Gazeta já comentou. É tipo uma moda; daqui a pouco vem o FIL, o da literatura, e, finalmente - quem sabe? -, o FIM, o da música.
O pessoal deste FID está exigindo uma “epistemologia sul”! Oh, quão erudito! Que “proposta” inteligente! Que os sábios se atribulem com a demanda dessa epistemologia com coordenadas geográficas, ou vão acabar desnorteados. Podemos depois sugerir uma “sudoeste”, contemplando aqui o nosso cantinho ocidental, não? Epistemologia é palavra danada de complicada e periga provocar trocadilhos não muito agradáveis.
Mas o gazeteiro teve sorte, não viu nenhum dos espetáculos do FID, só o catálogo-livro. Se tivesse visto algum, teria confessado tudo, pois as fotos dos espetáculos ali publicadas (excetuando-se os do FIDinho, os infantis) parecem ter sido obtidas na prisão de Abu Ghraib, no auge da Bagdá invadida. E não pense o leitor, que já viu as de Abu Ghraib, que isto seja figura de retórica ou exagero. Não estou exagerando. Foi uma verdadeira tortura ver aquelas imagens de horror, como registros de um festival de dança, e nem imagino o que deve ter sido para o espectador.
É o vanguardismo tardio se esborrachando e se ralando para encontrar rastros de contemporaneidade no sofrimento euro e egocêntrico da arte burguesa das Martas Grahams e Pinas Bauch da vida: “dançar es sufrir”, traduziu alguém para o espanhol.
Performáticas performances per forma: pura forma e muito formol. Um novo que já nasce velho e nada diz. Eles se pretendem como novidades de “última geração” e não chegam nem a uma versão descontinuada da fórmula decadente de um sofrimento que não é nosso – nunca foi! O sofrimento europeu é o do algoz; o nosso é o do herói. Vai nisso uma brutal diferença, senhores e senhoras epistemólogos: “o problema do europeu desesperado é não sofrer; o nosso é gozar. Ganhamos de longe.” (Oswald, já que o meteram também nessa caçamba)
Sobre os textos, não vamos embarcar nos trocadilhos chulos que seus equívocos provocam (já basta a linguagem chula da maioria das encenações de “dança” do FID, segundo depoimentos de vários espectadores). O que sobra dessa epistemologia toda, se passá-la na peneira, é um cientificismo de araque, sem análise, sem crítica, pseudo-erudito, superficial e irresponsável na relação com a filosofia e com a cultura brasileira. Oportunismo de má fé, tentando disfarçar-se de ousadia “criadora”, produz coisas assim, na introdução do catálogo-livro de um festival de dança:
“A epistemologia ou o pensamento Perspectivado (sic) pressupõe um local privilegiado de um único olhar central em que os outros são periféricos a este. Esta epistemologia é uma construção, não é imanente, universal ou absoluta. E, portanto, não deve ser aceita e praticada como lei universal, universalidade que se dissolve em suor, saliva, bílis, excremento, lágrimas de alegria/tristeza, secreções ambivalentes. (...) Quando você escuta o joão-de-barro, vê sua casa, e considera isso importante, está na epistemologia sul” (Banana, Adriana, catálogo-livro FID 2008, Introdução, páginas 6 e 8)
A pretensão vanguardeira de “bem informados”, a falta de tesão, o lobby gay (nada a ver com homofobia, por favor), os lobbies pessoais e autoritários, e, principalmente, a impunidade pela ausência de debate e de crítica sobre toda e qualquer produção chapa-branca: por aí se vai esvaziando a arte brasileira; nem a Bienal deste ano escapou desse vazio. Um vazio diretamente relacionado com a perda de soberania nacional, como concluiu brilhantemente o compositor Guilherme Vaz num escrito genial que a Gazeta promete comentar em outra oportunidade (melhor não misturar alhos e bugalhos).
Icebergs do norte vêm para cá se exibir como árvores frondosas, e árvores não tão frondosas daqui vão lutando para se tornarem icebergs lá. E nós pagando a conta do naufrágio. Fora o vexame vergonhoso a que fica exposta toda a nacionalidade...
Eis o fid.bh.mg.brasil.20.08, ipsis litteris.
Em troca, tivemos a exibição de grupos de nomes criativos e espirituosos como Balangandança. Fatal Black, Cia Dita e Corpo Cidadão (!!??). Há um espetáculo denominado “F de falso e P de Potente” (F for Fake and P for Powerful, in english), sem que Wells possa fazer nada, só tremer no túmulo, porque ninguém aqui vai mexer uma palha por ele. E alguns achados “luminosos”: “Nem tudo o que reluz é dança” e “A reta é a distancia mais curta entre dois pontos”, etcoétera, estão entre os “espetáculos” com que o FID brindou a população belorizontina.
No próximo, talvez tenhamos algo como “A redondez da roda”.
Abraços
Mario Drumond
Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico O Apito no endereço http://www.thetweet.blogspot.com.
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