Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de e-meio 25 (7/3/2008)

Terrorismo x humanismo

1. Terrorismo

“Afirmar que a Colômbia foi ‘israelizada’ não é um exagero, muito menos uma invenção; é uma verdade dolorosa e perigosa. A realidade e a história daquele povo nos dão a razão.” (Basem Tajeldine- Rebelión)

A história recente da Colômbia, em especial a do governo Álvaro Uribe, é uma seqüência de terror interminável que nem a imaginação dos melhores roteiristas do gênero seria capaz de conceber. Álvaro Uribe foi duas vezes “eleito” em processos opacos e ilegítimos, sem a mínima possibilidade de um acompanhamento isento por entidades internacionais, em que eleitores votavam sob a “supervisão” de paramilitares armados e nos quais a abstenção foi escandalosa (para se ter uma idéia, na última eleição, Uribe foi eleito com menos votos que Chávez e a população da Colômbia é o dobro da da Venezuela). Foi notório braço direito do narcotraficante mais famoso do mundo, o falecido Pablo Esobar Gaviria, e é catalogado pela CIA entre os 100 nomes mais importantes do narcotráfico colombiano (a ficha dele, no início dos anos 90, era a de número 82). No livro de uma ex-amante de Pablo (Amando Pablo, odiando Escobar), Uribe está no círculo mais íntimo daquele biguebóz das drogas, onde era carinhosamente chamado de Dr. Varito (diminutivo de Álvaro): “Se não fosse por ‘Dr. Varito’, [Pablo] ainda estaria transportando cocaína em porta-malas de carros e nadando até Miami para levar cocaína para os gringos” – escreveu ela. Escobar colocou Uribe no Departamento de Aviação Civil da Colômbia entre 1980 e 1982. Nessa época, segundo a ex-amante, ele ajudou a fortalecer os cartéis de cocaína: “Os aviões dos narcotraficantes podiam aterrissar e levantar vôo livremente para as Bahamas”. Dessa realidade surgiram dois novos recordes: a Colômbia tornou-se o maior produtor mundial de cocaína, e os EUA o maior consumidor da droga. Em troca, os cartéis, com o respaldo do Pentágono (hoje, a ele associados) e das oligarquias criolas, entregaram o poder político (de fachada) não só a Uribe, mas também ao elenco de cúpula dos seus dois governos, além de inúmeros senadores, deputados, governadores e prefeitos, muitos dos quais (mais de 80, entre os cargos mais altos e próximos a Uribe) com folhas corridas de criminosos contumazes, absolutamente impunes, mesmo com sentenças lavradas contra eles em vários tribunais ou com mandados de prisão em pleno vigor por assassinatos e crimes hediondos. Uma foto da cúpula do governo Uribe mais se assemelha à de uma gangue de bandidos e mafiosos, apesar da “cara de seminarista” do atual “chefe”, o herdeiro político de Pablo.

Acontece que o narcotráfico na Colômbia é só um instrumento de um poder muito maior: o poder do Império. O governo da Colômbia é um governo títere formado por uma mescla de membros dos cartéis da cocaína e das oligarquias tradicionais (que preservam antigos privilégios e interesses, e não incomodam). Segundo analistas militares de diversas publicações, como Thierry Meyssan, de Red Voltaire, a força aérea da Colômbia é 100% comandada por oficiais militares dos EUA utilizando equipamentos israelenses e ingleses. Quanto à Marinha, é 100% comandada por oficiais ingleses com equipamentos fabricados nos EUA e no Reino Unido. O Exército e os poderes Executivo e Legislativo são diretamente comandados pelo Pentágono, em regime de absoluta obediência, e o que resta do Judiciário opera quase que formalmente e debaixo de sua poderosa força de pressão. O comando de fato do Exécito está em mãos de oficiais dos EUA, Inglaterra e Israel. A Israel (Mossad) foi entregue também o comando das operações de inteligência e o recrutamento, treinamento e armamento do ostensivo e numeroso aparato paramilitar agora disfarçado de “segurança privada”, ainda que totalmente financiado com dinheiro público.

As autoridades e políticos colombianos são apenas a fachada institucional e “democrática” de todo este processo neocolonial. O povo fornece o elenco massivo das tropas para a conhecida função “bucha de canhão”. O dinheiro que paga tudo isso vem, em sua menor parte, do tráfico de cocaína, e, na maior parte, do sangue e suor do miserabilizado povo colombiano. O Pentágono entra com as (relativas) micharias dos Planos Colômbia e Patriota, além de outras chancelas e siglas de conveniência, quase tudo pago em forma de apoio midiático das empresas de comunicação a seu serviço, quase nada em dinheiro vivo (só aplicado na corrupção direta dos agentes locais).

Este quadro grotesco começou a se consolidar com a posse de Uribe, em 2002, e vem evoluindo numa seqüência catastrófica que já reclama mais de 100 mil vidas, na maioria, líderes políticos, sindicalistas e estudantis, e 5,4 milhões de refugiados na Venezuela (4 milhões), no Equador (1 milhão) e diversos países vizinhos, Brasil inclusive, em que predominam camponeses, indígenas e faixas pobres da população expulsas de suas terras ou amendrotadas pela violência de Estado, numa estratégia inédita de contra-reforma agrária (as terras abandonadas são reocupadas por multinacionais dos EUA, cartéis de narcotráfico e retorno de latifúndios). Ali se sucedem com inacreditável freqüência as imagens horripilantes de cruéis genocídios, aldeias inteiras dizimadas a metralhadora, bombardeios aéreos e cargas de dinamite, esquartejamentos a moto-serra (chegou ao ponto de uma criança ser “fatiada” diante dos pais), de matanças por torturas inimagináveis, incluindo-se serpentes venenosas e animais ferozes, cujos rastros e documentos são por vezes encontrados por entidades como a Cruz Vermelha Internacional em tenebrosas covas coletivas de ossadas e restos de cadáveres trucidados nos quais se revelam métodos de matança por indescritíveis selvageria e barbárie.

Na obsessão belicosa desses agora autodenominados “caçadores de terroristas” que aterrorizam o planeta (antes eram “combatentes contra o narcotráfico”), os movimentos históricos de guerrilha (FARC e ELN) devem ser simplesmente eliminados. Como tais movimentos – que operam há mais de 60 anos em todo o país - já se confundem com vastas camadas da população, é esta o alvo das ações bélicas do Estado, a cada dia mais letais e mais destruidoras para o povo e o país, valendo-se até de armas químicas e das famosas “bombas rácimo”. Mas em nada afetaram as forças insurgentes, que, pelo contrário, só parecem aumentar e se fortalecer. E o histórico é o mesmo: uma lista interminável de mortes, seqüestros, prisões políticas e crueldades perpetradas em combates, tentativas de resgate de reféns e escaramuças várias, todas, sem exceção, completamente fracassadas, e nas quais só restou a contagem dos mortos e a avaliação dos danos.

A Colômbia é hoje um cenário de terror onde a minúscula oligarquia se proteje em bunkers ao lado de uma pequena classe média (os eleitores de Uribe) que vive em meia dúzia de grandes centros urbanos alienada no entretenimento adocicado da mídia, vivendo a futilidade de suas existências a frequentar shoppings centers e a desinformar-se pela TV. E sem a menor consciência de que estão ilhados em um mar populacional massacrado pela miséria, analfabetismo, doença, ignomínia, descaso e exclusão (nem as pesquisas de opinião na Colômbia contemplam as camadas mais pobres da população) - e ainda alvos preferenciais da máquina de guerra que sustenta com o próprio sangue e suor! É o cenário do terrorismo.

A par da violência interna, o governo colombiano conduz uma política externa de franca e descarada irresponsabilidade e belicismo. Neste ponto, não passa de um arremedo mal produzido do governo Bush, uma caricatura mal desenhada. Com o beneplácito dos meios de comunicação a seu serviço, Uribe e seus asseclas imediatos mentem com facilidade ao mundo inteiro, desprezam as mais elementares normas diplomáticas, fingem desconhecer seus próprios compromissos e traem constantemente os pactos e os tratados feitos com seus vizinhos em solenes ocasiões, como foi o caso da mediação de Hugo Chávez com as FARC para a liberação dos prisioneiros de guerra dos dois lados e a busca da paz na Colômbia.

Em 1º de março passado, sempre sob as ordens de Washington e as alegações mais que fajutas da tal “guerra preventiva”, Uribe tentou inaugurar uma nova fase de sua política externa: a exportação da violência interna a seus vizinhos e, por extensão, a toda a América Latina. Foi uma trapalhada total que prosseguiu nos desacertos de suas declarações - tão simplórias quanto contraditórias e ridículas - e que teve por troco a inesperada (para eles) reação do presidente do Equador, Rafael Correa, que pôs a boca no mundo em justa indignação pela invasão atabalhoada e insensata de seu país. Mesmo os aliados mais próximos de Uribe, como Lula, não tiveram outra saída senão repudiar aquela ópera bufa, bélica e genocida. Até a OEA, que nunca tinha se manifestado nem contra nem a favor de atitudes do tipo, teve de se manifestar contra, pela primeira vez na História. Além disso, Uribe deu às FARC um novo e valiosíssimo mártir: Raul Reyes.

Estes últimos fatos só têm de positivo a revelação de que a ‘israelização’ da Colômbia está fazendo água e não vai dar certo. Os latinoamericanos não temos a índole belicista que nossos mesmos invasores encontraram no Oriente Médio. É mais fácil um Antonio Conselheiro nos levar à guerra por questões morais e religiosas do que irmos a ela para tomar um bem que é de outrem. Valores materiais não são o nosso forte, mas isso não quer dizer que não defenderemos o que é nosso quando o perigo surgir. O que nos é preciso, e isso é urgente, é termos consciência do que é nosso.

É, pois, triste ver a postura de um jornalista combativo como Hélio Fernandes, em suas últimas colunas. Nelas, ele destila um ódio raivoso e sem fundamentos contra Hugo Chávez que lembra muito o de Lacerda contra Vargas, e nos exibe pontas de preconceitos de classe e até de racismo. Somou-se à matriz de opinião muito mal formulada pela mídia hegemônica ao querer culpar Chávez pela invasão da Colômbia ao país soberano do Equador, coisa que só pode convencer um completo débil mental. Fingiu-se de desinformado e chegou ao absurdo de afirmar que foi o Equador que invadiu a Colômbia em 1º de março! Foi o único a escrever isto no mundo inteiro, à completa revelia de todos os fatos e documentos que vieram à tona, os quais se demonstraram tão claros, óbvios e irrefutáveis que conveceram até o congresso poltrão da OEA. Terá ficado gagá?

Na próxima Gazeta, o item 2. Humanismo.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com/)

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