Jornalixo e antimatéria
O programa chama-se Agenda (cultural), da emissora estatal de TV Rede Minas. A matéria deveria informar sobre a peça teatral O Arquiteto e o Imperador da Assíria (noticiada em primeira mão na Gazeta 21, de 14/1/2008) e sua estréia, em breve, num teatro de BH.
O formato da matéria publicada ficou indefinido: nem é o de uma entrevista com o diretor, Ronaldo Brandão, nem o de uma reportagem sobre a montagem da peça. Resumiu-se a trechos extraídos das declarações do diretor - dadas, ao que parece, sem a interrogação de um jornalista, se é que havia um na equipe de reportagem - e escolhidos sem nenhum foco jornalístico identificável. As falas foram entremeadas com cenas de ensaio, numa edição mal intencionada e cheia de erros grosseiros, incluindo os crassos, como o de fazer cortes num mesmo plano de câmera fixa, que picotam a continuidade do movimento e dão a impressão incômoda de estarmos vendo um filme aos pedaços, como nos velhos cines poeira.
A sorte do espectador é que Ronaldo Brandão é expressivo e cultiva uma personalidade excêntrica e sofisticada. Em qualquer circunstância, é interessante vê-lo e ouvi-lo. Porém, do ponto de vista jornalístico, a matéria foi um desastre. Na verdade, foi uma antimatéria.
Algumas questões que, neste caso e entre outras, seriam prioritárias para um repórter profissional que buscasse o foco jornalístico da matéria (e não foram feitas):
- por que o diretor escalou duas atrizes para os dois papéis masculinos do texto original?
- a que se pode atribuir o súbito interesse do teatro nacional por esse texto, que não era montado há décadas no Brasil, e que só neste último ano já recebeu três novas montagens (uma no Rio, outra em São Paulo e agora, em BH)?
Informações que, neste caso, seriam de publicação obrigatória para que o programa de fato prestasse um serviço de agenda cultural ao público e ao evento (e não foram publicadas):
- nomes das atrizes e ganchos (destaques) sobre elas. Guga Barros, p. ex., apesar de novata na cena teatral, é mais conhecida do público jovem de BH do que o próprio diretor da peça. Há anos que ela modera ou ancora programas de considerável audiência na mesma Rede Minas e teve experiência com cinema; a veterana Soraya de Borba, que, entre outros destaques biográficos, foi atriz do Teatro Oficina, dirigido por José Celso Martinez.
- referências, ao menos nominais, à equipe diretora, que é composta de renomados profissionais, todos bem conhecidos daquele que seria o “público-alvo” da matéria.
- local, datas e horários da temporada de estréia. A emissora preferiu dar o endereço do site na internet onde tais informações poderiam ser obtidas, o que, por sinal, ocupou mais minutagem (tempo de edição) do que se desse a informação diretamente ao público.
Assim, numa síntese, teria sido mais ou menos esta a mensagem captada por um espectador jovem, com uma cultura geral acima da média (de hoje):
“Um senhor, que já viu mais de 40.000 filmes, está dando aulas de teatro para moças em BH (me pareceu assim). Mostraram duas alunas declamando uns textos de um espanhol sobre a Babilônia (acho) enquanto outras alunas ficavam olhando, e o professor, cujo nome não me lembro, falava umas maluquices. Uma das que declamaram se parece com a Guga Barros, mas não deve ser ela, porque não falaram o seu nome. A outra é uma boa cantora que eu não conhecia, e também o nome dela não disseram. Deram o endereço do site da escola, mas era muito extenso, e não deu para guardar de cabeça. Paciência!”
Por sua vez, maldosa mas incompetente na manipulação do material, a emissora tentou passar ao público a seguinte mensagem:
- o ator e diretor de teatro Ronaldo Brandão, que já viu mais de 40.000 filmes e acha “chic” ser preguiçoso, está dirigindo uma nova montagem de O Arquiteto e o Imperador da Assíria, do autor espanhol Fernando Arrabal. A peça vai estrear em breve. Quem quiser ir, que vá (subliminar: nós aconselhamos a ficar em casa vendo os nossos ótimos programas). As informações sobre local, datas e horários da temporada de estréia podem ser consultadas no site www ponto pepepepapapapipipipupupu ponto não-sei-o-quê ponto br.
Pelas leis da Física, matéria e antimatéria não podem coexistir, porque o encontro de ambas provocaria uma explosão tal que liberaria uma quantidade enorme e incontrolável de energia. Elas só não valem para o nosso atual jornalismo, como ficou demonstrado neste programa de TV, onde matéria e antimatéria jornalísticas agora coexistem inofensivas na mesma lixeira de suas existências efêmeras e inúteis. Ou bem a emissora presta o serviço ao público e ao evento, como propõe o seu programa, ou não publica nada. Incompetência e mau profissionalismo não são justificáveis numa emissora estatal; nem a falta de grana para contratar quem de fato saiba fazer as coisas (em todos os níveis). (1)
O nosso maior tesouro
Pode-se dizer que foi o padre Manuel da Nóbrega o gênio criador do mapa do Brasil. Em 1554, ele inaugurou o Marco Zero da cidade de São Paulo (então Piratininga) às margens do Rio Tietê, mas estava pensando não em uma cidade, e, sim, num país, o Brasil, tal como hoje o conhecemos. Tanto é que na base do Marco Zero há uma estrela apontando para os diversos pontos geográficos nacionais que, a partir dele, deveriam ser alcançados.
Nóbrega justificou a colocação ali do Marco Zero a partir de uma visionária e pioneira identificação do Rio Tietê como via natural de acesso ao interior do Brasil e de encontro com uma muito favorável conjunção de elementos geográficos. Em tupi-guarani, Tietê significa “do contra”, e, no caso, o rio que não corre para o mar, apesar de nascer perto dele, na Serra do Mar. Assim, desde aquele marco estratégico bem próximo ao oceano, de onde provinha toda a logística de ocupação, era possível navegá-lo até o Rio Paraná, formado pelo encontro dos dois rios (Grande e Paranaíba) que desenham a ponta do nariz de Minas Gerais, e ir até o Prata, viabilizando a colonização, pelo interior, de toda a região Sul do país, tal como se deu. Por outro lado, a poucos quilômetros a noroeste do encontro do Tietê com o Paraná, estão as nascentes da bacia do Rio Araguaia, que corta toda a nossa região Centro-Oeste e, depois de confluir com o Rio Tocantins, vai desembocar no delta do Rio Amazonas, perto da ilha de Marajó, possibilitando a colonização de todo o Pantanal e uma nova rota de penetração na Amazônia, pelo interior e pelo sul, como de fato aconteceu.
Pegue o mapa, leitor, e veja as veias primárias da formação do nosso país, que todos deveríamos conhecer desde a escola primária, pois já as sabia o jovem e genial Nóbrega, há mais de 450 anos, e isso nos vem bem escrito e descrito por ele, com riqueza de detalhes, em duas de suas principais obras: Informação da Terra do Brasil (1549) e Informação das Coisas da Terra e Necessidade que há para Bem Proceder Nela (1558).
Ainda mais genial em Nóbrega foi a estratégia de ocupação, colonização e união territorial, por sua eleição da arma principal de conquista: “a língua” – estabeleceu ele –, “a língua de Portugal”. Foi pela unidade lingüística e não por disputa de território (que então sobrava e dava para todos os países do mundo pegarem suas fatias, se pudessem) que, sob o comando intransigente e incondicional de Nóbrega, lutou-se aqui até a morte para expulsar franceses, holandeses e espanhóis do nosso território. Nóbrega queria uma só língua sendo falada pelos colonos até o último centímetro da linha de fronteira do seu mapa visionário, e, até onde esta língua pudesse alcançar domínio, se estabeleceria então a fronteira. Assim se deu, e assim se dá, com a atualização de Noel Rosa: “é brasileiro, já passou de português”.
Simon Bolívar fracassou no mesmo intento, 250 anos depois, por tentar, a golpes de espada, a união hispano-americana que lhe daria a “Gran Pátria”. Este fora o seu maior erro, e Hugo Chávez procura agora corrigi-lo valendo-se, sem que saiba disso, da estratégia bem sucedida de Nóbrega. Muito maior eficácia do que os Sukoys (que só têm valor como arma de defesa) têm e terão a TeleSur e o ambicioso plano cultural e comunicacional que desenvolve com prioridade em torno da língua de Cervantes, numa busca de paz e união, e não de guerra e dominação. E está logrando êxito. A Venezuela tornou-se referência de uma nova comunicação revolucionária e o epicentro mundial de profundas mudanças culturais e políticas que já se fazem marcos do novo século. Todos os países voltam suas atenções para ela. É facilmente notável o crescimento em importância do espanhol que já ameaça o inglês como segunda língua de vários países não hispânicos, inclusive o Brasil.
Quanto a nós, precisamos entender e considerar mais o valor do nosso maior tesouro pátrio, pois o estamos perdendo e, se o perdermos, perderemos a nossa nação – que já começa a enfraquecer-se, a fragmentar-se e a perder-se em seus pontos mais frágeis e longínquos. Nóbrega foi o primeiro guardião desse tesouro, e a ele muitos sucederam até os nossos dias, numa extensa relação que não cabe nesta Gazeta. Seus nomes são mais importantes e mais lembrados do que os dos ministros da Fazenda, da Economia, das Armas, da Guerra, da Defesa e da maioria dos presidentes. Há cinco ou seis décadas, uma campanha antinacional vem promovendo a desvalorização dos guardiães da nossa língua, e sabemos bem por quê. Mas alguns deles permaneceram e ainda estão aí, anônimos, realizando heroicamente seus deveres de patriotas, e, no futuro, se conseguirmos escapar dessa mixórdia existencial em que nos metemos, vamos tirar o chapéu para todos eles e reconhecer que devemos a eles, mais que a quaisquer outros, a preservação do legado de Nóbrega.
Este texto é uma modesta homenagem que este gazeteiro faz a todos os guardiães da língua pátria. Em particular, àqueles a quem tive o privilégio de conhecer pessoalmente, enquanto estavam conosco neste mundo, a saber: Eduardo Frieiro, Ayres da Matta Machado e João Etienne Filho; os dois últimos foram meus professores no Colégio Estadual.
E a Frederico de Oliveira, revisor da Gazeta, nosso maior requinte editorial; e que, para mim, foi mais que um professor – foi (e é) um mestre.
Abraços
Mario Drumond
(1) Suprindo as falhas dos órgãos “oficiais”, a Gazeta informa:
O Arquiteto e o Imperador da Assíria
Peça teatral de Fernando Arrabal
Com : Soraya de Borba (Imperador) e Guga Barros (Arquiteto)
Direção: Ronaldo Brandão
Produção: Hélio Zolini
Cenário: Eri Gomes
Figurino: Luiz Otávio Brandão
Preparação Corporal: Izabel Costa
Trilha sonora: Marcos Kacowicz
Temporada de Estréia: de 10 a 20 de abril de 2008 (qui a sab 21h; dom 19h)
Teatro Galpão Cine Horto – Belo Horizonte
(tel. 31 3481 5580 – o cartaz não oferece endereço de site na Internet)
Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)
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