Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de e-meio 56 (13/8/2008)

A história da humanidade é a história do contínuo desenvolvimento do reino da necessidade para o reino da liberdade. (Mao Tsé Tung, 1964)


Poema da Liberdade

As cenas absolutamente geniais do espetáculo de abertura das Olimpíadas que se propagaram pelo mundo, através da TV, ainda devem estar vivas na memória de todos. E ficarão para sempre nos registros mais sublimes da história da arte. Foi com iluminada felicidade que o diretor do espetáculo, o cineasta chinês Zhang Yimou (Lanternas Vermelhas), e todos os artistas e técnicos que trabalharam com ele dentro e fora de cena, lograram a síntese da cultura e da história multimilenar da China, ao valerem-se dos vastos recursos que tiveram para o serviço exclusivo da arte, em seu sentido maior e sem concessões. Destacou-se, e superiormente, a alegria (com garra) que reinou entre os protagonistas do espetáculo; a alegria natural e espontânea dos vitoriosos. “A alegria é a prova dos nove”, considerava a sabedoria chinesa de Oswald de Andrade. Sem dúvida, quando não há alegria é porque algo de errado ocorreu na conta da vitória.



Outro destaque foi a sutileza do discurso, por excelência e em primeiro lugar, poético, como toda expressão de arte maior oriental, especialmente a chinesa. E para além da magnífica composição e montagem histórico-literária do bem elaborado roteiro e do bem acabado e super bem produzido tratamento cinematográfico que recebeu. Tal sutileza foi transmitida pelas linguagens da dança, da música – foi basicamente um espetáculo musical de dança - e da aquarela, a mais delicada das expressões de artes plásticas, que foi colocada, magistralmente, no eixo central de todo o argumento cênico.

A esta sutileza não alcançam nunca as mentes ocas de pensamento vulgar que predominam nas elites de poder euro-ocidental, sempre que quando com ela se deparam. É por isto que ao estudarmos as suas relações com a cultura oriental ao longo dos tempos, temos, na maioria dos casos, a impressão de que foram como bárbaros assaltos de cães imundos e raivosos à serenidade silenciosa e asséptica dos santuários budistas.

Isto não se deu de forma diferente agora, como bem ilustra a charge de Chispa (ao lado), publicada no site Rebelión. Os pobres chineses tiveram de engolir, com a gentileza e a modéstia naturais à boa educação que os caracteriza, desde a grosseria texana de Bush, a dar lições de direitos humanos (logo, quem!?), passando pelo playboy francês Sarkosy reclamando de "liberdade de expressão", porque o site de seus “Repórteres sem Fronteiras (de Caráter)” não podia ser acessado pelo motor de busca chinês (Sarkosy acaba de bloquear e tirar do ar o site RedVoltaire, o mais bem informado da internet possível de se acessar via Google, único motor que temos e que nos bloqueia quase todos os sites políticos e jornalísticos russos e orientais) até à estupidez vazia como os peneus mentais dos locutores esportivos e da maioria dos jornalistas “de opinião” da imprensa lixo-global-ocidental. Nós, latino-americanos, não temos nada a ver com isso, mas o nosso Lula, no afã de imitar os colegas do norte, não podia deixar de marcar presença com mais uma de suas gafes ao justificar, para a imprensa, a sua presença no evento, não para prestigiar e aplaudir a bela recepção oferecida pelo país amigo e anfitrião, mas, para interesses próprios, isto é, “para batalhar a vinda das Olimpíadas ao Brasil”.

Assim, foi quase impossível desfrutarmos o esplêndido espetáculo que a China proporcionou ao mundo, em simultâneo sonoro aos estertores verbais de cronistas esportivos contaminados de reacionário despeito e da mais agressiva ignorância, além da falta de respeito e de sensibilidade diante do que se passava. Também, coitados, foram completamente cegados a tudo o que aponta ou assinala para o horizonte da liberdade – para eles, a liberdade é uma estátua que fica em Nova York - e o espetáculo chinês foi um poema sublime. Um poema ao panorama da liberdade que arduamente aquele povo soube construir e conquistar, com sabedoria, frente aos enormes atropelos que a sua história e a sua cultura foram - e continuam sendo - submetidas ao longo dos últimos cinco séculos.

Foi então, com a mencionada sutileza, que os chineses driblaram a demonização que contra eles sempre se descarrega pela estupidez eurocêntrica do ocidente, e deram ao mundo uma lição de arte e de história da civilização e da China, ao mesmo tempo em que faziam para si mesmos uma comovente homenagem ao que lhes é mais caro e sensível.

De quem mais poderiam ser as pegadas de fogo que, pelos céus de Pequim se formavam, como se deixadas pelos passos de um gigante etéreo que percorreu, no eixo geográfico da metrópole, A Grande Marcha desde a antiga Cidade Proibida até o futurista Ninho de Pássaro, senão as do, em espírito, homenageado principal, o Grande Timoneiro Mao Tsé Tung, o Libertador da “China moderna e forte”?

A voz de rouxinol da linda criança vestida de vermelho, logo após a subida dos anéis olímpicos levados pelas fadas aladas da mitologia indiana, não só significava “o futuro da humanidade” - ela trazia também, no signo mais íntimo de sua beleza feliz e promissora, a essência mais nobre do célebre Livro Vermelho que orientou a Revolução Cultural da China, período histórico de fundamental importância ao processo libertário daquele país. Período que foi reverenciado em toda a segunda parte do espetáculo (“China moderna e forte”), na qual, inclusive, a menina de vermelho retorna, puxada por uma pipa, sobrevoando uma formação de bailarinos que mimetizava a arquitetura do Ninho de Pássaro, como se marcasse a presença viva do Livro na cultura contemporânea.

Mao Tsé Tung – O Livro Vermelho – A Revolução Cultural da China. Três "demônios" superlativamente demonizados na mediocridade midiática, eurocêntrica e “global”. Dante teria de criar um novo círculo no Inferno só para abrigar os famigerados Mao Tsé Tung e o “grupo dos quatro”. Mas os satanizadores de “direita” ou “esquerda” nada sabem sobre Mao, nunca leram o Livro Vermelho e jamais vão procurar entender qualquer coisa do que seja lá uma revolução cultural, ainda menos a da China. Como papagaios, repetem os clichês: Mao é o monstro comunista (comedor de criancinhas), o Livro Vermelho é o manual dos “incendiários” e a Revolução Cultural o “culto à personalidade” do monstro.

Só para começar: não existe culto à personalidade na cultura oriental. Trata-se de uma psicopatologia muito afeita a coletivos europeus marcados pelo absolutismo carniceiro de certos “líderes”. Poderia receber o nome de “síndrome de Augustus”. Desde o próprio César até Hitler, entre os mais célebres que sofreram da moléstia, listam-se nomes como os de Luiz XIV, Napoleão, Stalin e Mussolini.

O Livro Vermelho, uma coletânea de excertos de discursos e textos publicados por Mao Tsé Tung, entre 1930 e 1966, coligidos por Lin Piao, então ministro da Defesa da China, é um guia de moral e conduta revolucionárias, uma obra típica da cultura oriental e que foi, com muita razão, leitura básica da Revolução Cultural. Defende os valores da humildade, da modéstia, da simplicidade, da discrição, do recato, do altruísmo, os quais considera fundamentais à educação revolucionária chinesa, e condena a arrogância, a prepotência, o egoísmo, etc, contra-valores que pertencem ao capitalismo e à educação ocidental. Permanece atual, pois, sendo obra de gênio, é imortal. Hugo Chávez, na Venezuela, se vale amiúde das lições que nele são inscritas. Adquiri meu exemplar na década de 70, e não mais me separei dele. É de ótima leitura.

A meu ver, ainda que sem tal intenção, nem pretensão, as palavras de Mao de certa forma atualizam as de Confúcio. Uma frase solta no meio do livro sintetiza bem a obra: “o que precisamos é de um estado de espírito entusiasta mas calmo, e de uma atividade intensa mas bem ordenada”. Num outro trecho, escrito em 1956, Mao faz avaliações muito sinceras e autocríticas sobre o passado da luta revolucionária em seu país para, em seguida, ousar, sem que nisto vá qualquer laivo de otimismo banal, uma previsão certeira sobre o futuro que hoje a China vive com alegria: “no ano de 2001, que marcará a entrada do século XXI, a China terá se tornado um poderoso país socialista industrializado.”

Quanto à Revolução Cultural, para resumir, se ela não fosse feita a China talvez tivera o mesmo destino da União Soviética. Não há revolução vitoriosa sem a sua revolução cultural. Mao compreendeu isto com clareza e não teve dúvidas em agir. Demonizam-na porque Mao tirou os burocratas das mesinhas de repartição e os artistas e intelectuais das torres de marfim para enviá-los ao campo e ajudar os camponeses nos plantios e colheitas e os operários nas obras de infra-estrutura. O ocidente queria liquidar a revolução pela fome e bloqueava à China o acesso à importação de comida. A China teria de alcançar rapidamente a autosuficiência (como a alcançou, e ainda a mantêm) ou submergiria no caos. Não podia se dar ao luxo de dispensar um só par de braços que tivesse saúde suficiente para o trabalho. Além disso, outros valores revolucionários estavam em jogo, desde a perniciosa burocracia estatal até a tendência ao aburguesamento do fazer artístico.

Não poderíamos fazer o mesmo individualmente; incorreríamos no mais puro idealismo. Mas, quem de nós se queixaria por ter de participar, mesmo por obrigação - e no caso uma obrigação nobre, emergencial e patriótica -, de um projeto de governo como aquele, que nos levasse ao contato com camponeses e operários e ao trabalho direto com a terra e com o povo, nos plantios e colheitas e nas obras públicas? Só teríamos muito a ganhar, como muito ganharam os intelectuais e artistas chineses que participaram daquele grande projeto nacional e hoje criam, produzem e realizam um espetáculo como o que vimos. Nenhum país ocidental tem condições de fazê-lo tal como eles fizeram, no mesmo nível de qualidade, técnica e artística, e com a mesma e incrível noção de proporção e liberdade, disto dou certeza; a poesia não se submete ao interesse comercial e capitalista. É que a Revolução Cultural deu-lhes condições reais, práticas e objetivas de apreender o significado mais profundo do ideograma que foi um dos astros do espetáculo, nas três versões históricas em que se exibiu no decorrer da portentosa sequência dos tipos móveis:

• • • • • • • • • • • • • • • • • r• • • • •••••••HARMONIA = PAZ = LIBERDADE.

No oriente, desde os tempos mais remotos, estas três palavras (significantes) estão numa só idéia (ideograma). Tal como na nossa ancestral e igualmente antiquíssima cultura indoamericana. É preciso ser tolo para crer que isto é só uma coincidência.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com/)

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