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Gazeta em forma de e-meio 43 (12/6/2008)

A carta aqui publicada é real mas foi despojada dos dados e nomes que a identificam para que seja lida como informação e denúncia de interesse geral, e não como um caso restrito a determinadas pessoas ou eventos. Ao final, seguem-se os comentários da Gazeta.


Excelentíssimo Senhor Ministro da Cultura, Gilberto Passos Gil Moreira,

Levamos esta à instância do gabinete de V.Exª por acreditar que coisas estranhas estão ocorrendo na Secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura, em relação ao nosso Projeto de Espetáculo. Nós, abaixo assinados, temos motivos para suspeitar que somos vítimas de uma perseguição injustificada e desleal por parte daquela Secretaria.

Afora um histórico de dificuldades nas relações entre nossas pessoas, enquanto artistas e realizadores independentes de arte brasileira, e este ministério da Cultura, que já vem de antiga data, acabamos de receber um ofício daquela Secretaria que é uma peça reveladora dos níveis de descalabros e arbitrariedade a que chegam certas instâncias dos poderes públicos quando empenhados em tarefas opostas às finalidades que, em tese, as justificam.

O ofício, já na primeira linha, assevera que resulta de análise “financeira” – assim mesmo, com aspas em financeira –, que foi realizada no que ali vem descrito como “documentação apresentada a título de prestação de contas ‘final’ do projeto”, final também com aspas (??); o grifo é nosso.

Em primeiro lugar: nunca apresentamos nada ao MinC “a título de prestação de contas”. O que apresentamos e protocolamos no MinC, na data de 30/01/2006, foi o Relatório Final do Projeto de Espetáculo, em total conformidade com o Roteiro para Prestação de Contas que era oferecido na época pelo MinC no seu Manual de Mecenato. Tal documento foi entregue assinado pelo proponente/diretor do Projeto, pelo produtor do espetáculo, pelo assessor jurídico do proponente e pelo contabilista do Projeto.

Em segundo lugar: as aspas colocadas no termo que designa o tipo de análise feita em nossa documentação só podem ser entendidas como irônicas e denotadoras de que só na aparência aquela análise foi financeira. O próprio conteúdo textual do ofício revela que não foi feita análise financeira nenhuma em nossas contas, pois, se tivesse sido feita, não traria a descabida cobrança feita no seu item B, uma vez que teria sido verificado que o item cobrado não foi pago com “dinheiro público”, como quer imputar-nos a leviana acusação que naquele ofício nos é feita. O valor cobrado para devolução (R$ 300,00! – sim, trezentos míseros reais!) foram descontados dos honorários da bailarina atendida pelo referido odontólogo, a qual, além do mais, cobriu o recibo daquele profissional com a nota fiscal que contabiliza seus próprios honorários de Bailarina Principal. O recibo do odontólogo consta da prestação de contas apenas por obrigação normativa do Manual do Mecenato, uma vez que, por razões de urgência, o cheque foi emitido em nome dele e a ele foi pago diretamente. Isto está claramente demonstrado e documentado em nosso Relatório Final.

E, mesmo que não fosse assim? Que lei, regra ou norma impede a produção de um espetáculo cobrir ou adiantar despesas de emergência odontológica para um membro importante do seu elenco, se isto se faz necessário? Em seu ofício, a Secretaria sequer fundamenta legalmente a cobrança, justamente porque ela não tem fundamento legal nenhum, ela está sendo feita só para prejudicar os responsáveis pelo Projeto.

Sendo assim, se o MinC não nos explica que tipo de análise tem sido de fato feita em nossa documentação, temos neste ofício o documento de mais uma forte evidência que sustenta os motivos de nossas suspeitas.

Mas os descalabros não ficam aí. O ofício vem acompanhado de um inusitado anexo intitulado Demonstrativo de Débito, em que contas são apresentadas como resultado de condenação estabelecida em acórdão do TCU, o que É UMA MENTIRA, pois nunca recebemos nenhuma intimação daquele Tribunal para nele comparecer com explicações sobre contas nossas, e apresentar a nossa defesa, que é o direito mais elementar de todo cidadão. A data do tal “acórdão” ali mencionada é a de 04/12/2006. Mas só agora, em 23 de maio de 2008, portanto, 18 meses depois, a Secretaria, sem nos pedir ao menos uma explicação sobre o documento em relevo, insta por nos cobrar a absurda devolução (dos R$ 300,00), acrescida de juros e atualização aplicados a um período de 34 meses, 18 dos quais se devem senão à incúria, à mais flagrante (e confessa!) negligência da própria Secretaria.

O senhor ministro poderia argumentar que não vale a pena uma discussão dessas por causa de tão pouco dinheiro. Talvez tivesse razão. Mas, além de não ser da nossa índole baixar a cabeça diante de injustiças perpetradas pelos poderes públicos, a coisa não fica só aí.

Há mais!!! O item A do referido ofício nada mais é do que uma exigência já feita pela mesma Secretaria, em ofício muito anterior, que foi atendida em nossa Resposta ao Ofício MinC Nº – Análise da Prestação de Contas Final do Projeto de Espetáculo e exigências. A nossa resposta ao item A do atual ofício encontra-se COM TODAS AS LETRAS no item 4.2 daquele documento, que foi protocolado no MinC em 20/11/2006, portanto, há 19 meses.

Ao final deste breve e famigerado ofício, a Secretaria faz as costumeiras ameaças. Já enfrentamos coisas muito mais temíveis, como a ditadura militar dos anos 1970, eis por que não nos atemorizam tais manifestações de prepotência por parte de funcionários públicos (desde que não estejam armados de fuzis, é claro).

Em nossa Resposta, acima mencionada, manifestamos o desapontamento da produção pelo papel do MinC em nossa realização (que já conhecíamos de sobra, mas não custava reiterar), nas “Considerações Preliminares, item 1.2, letra D”, que vai aqui reproduzido na íntegra:

“Por fim, a ‘Análise’ sequer se deteve, por uma linha que seja, nos objetivos e metas artísticas e culturais do Projeto de Espetáculo, desprezando assim todo o valioso material de registro e divulgação do espetáculo que foi incluído na montagem do portfolio enviado, inclusive um registro audiovisual completo assinado por profissional de notória e reconhecida competência. O que é de se estranhar, pois os objetivos e metas dos projetos culturais apoiados por Leis de Incentivo são, como no caso do nosso Projeto, em essência, artísticos e culturais. Ao menos deveriam ser, e, portanto, merecendo a avaliação prioritária e cuidadosa por parte da Secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura do MinC quanto aos seus resultados, e se tais objetivos e metas foram ou não alcançados. Até porque são os objetivos e metas dos projetos culturais que, a nosso ver, se enquadrariam na área de competência desta Secretaria, e não certas minudências e detalhes de natureza puramente burocrática, sem qualquer importância ou influência para os resultados artísticos e culturais dos projetos, os quais, no caso do nosso Projeto, modéstia à parte, foram logrados com alto nível de excelência e são demonstrados à exaustão pelo rico material enviado.”

Vimos, então, que o MinC administra e fiscaliza os enormes recursos públicos que aprova por via das Leis de Incentivo da forma mais (propositalmente) amadorística e ingênua, que jamais um profissional com razoável experiência em administração poderia conceber. Quer cercar tudo nas prestações de contas! Ninguém fiscaliza a realização em si, ninguém do MinC compareceu a ensaios do nosso espetáculo, ninguém entrou em contato com a produção, ninguém se apresentou como elemento de ligação, ninguém deu apoio institucional, ninguém se manifestou em momento nenhum, por motivo nenhum, durante a produção, nem enviou representantes aos eventos de estréia ou, ao menos, por elegância ou cavalheirismo, ainda que formal, flores e cartões de “boa sorte” aos artistas do elenco.

Depois de tudo feito, todo o dinheiro consumido, aí sim, vão “analisar” a papelada. E só o fazem por correspondência, via ofícios e exigências. Ninguém aparece para conferir in loco a papelada, como nas ações fiscais de outros órgãos públicos.

Esta Secretaria nos persegue porque nos teme. Ela nos teme porque fazemos nossas obras honestamente, obtendo um máximo de resultados com um mínimo de recursos, e porque nos recusamos a ser coniventes com tal estado de coisas. É o que a assusta! Como ela vai explicar os milhões e milhões de reais gastos em eventos “incentivados” - sem a menor preocupação com seus retornos artísticos e culturais e sem nenhuma transparência fiscal -, se comparados a uma realização como a nossa, tão rica, tão transparente, com o emprego de mais de trinta profissionais altamente qualificados, muitos deles de renome nacional e até internacional, e que foi produzida e estreada, com resultados físicos e artísticos muito a maior em quantidade e qualidade que os previstos no Projeto, com tão poucos recursos (R$ 150 mil)?

E como explicar que, além de sabotar a nossa realização desde a sua produção e, depois, ao exercer pressões sobre o patrocinador impedindo-a de prosseguir em turnê após a estréia, pelo que se perdeu todo o dinheiro público investido em sua montagem, a Secretaria está “analisando” suas contas há quase três anos, contas que são sustentadas em cerca de 600 documentos fiscais relacionados nas planilhas normativas do nosso Relatório Final, todas perfeitamente passíveis de auditoria e que fornecemos inclusive em meios digitais, para, no fim, atentar contra as carreiras artísticas de seus realizadores ao pretender glosar - por ato arbitrário, injusto e iníquo - uns miseráveis R$ 300,00 pagos a um dentista para acudir a emergência odontológica de uma bailarina?

Francamente, senhor ministro!

Pedimos que V.Exª receba e defira, em nome da cultura brasileira, o nosso mais veemente protesto, e que dê providências convincentes para que tais descalabros não voltem jamais a ocorrer no âmbito deste ministério.

Belo Horizonte, 10 de junho de 2008.

Assinam, os realizadores independentes de cultura brasileira responsáveis pelo Projeto de Espetáculo, cujo resultado final foi um espetáculo de dança, o qual, através de outro projeto aprovado pelo MinC deveria ter circulado em turnê pelas principais capitais brasileiras.


Comentários da Gazeta

Já que neste affair o MinC tocou na questão do “dinheiro público”, devemos discuti-la também. Sabemos como ele tem sido usado no âmbito das instituições públicas, afinal, estamos no país do “mensalão” e outras ignomínias; um país que inaugura (duas vezes) uma biblioteca pública, como a Biblioteca Nacional de Brasília, sem nenhum livro em seu interior. Nenhum! Sabemos dos montantes de verbas que são “aprovadas” pelo MinC para todo tipo de realizações ditas “culturais”, e de como se fazem as aprovações e as aplicações desses astronômicos recursos, sem que se apresente nenhum resultado útil ou visível à população (em muitos casos justamente porque são realizações invisíveis mesmo). Sabemos das corriolas que se beneficiam no triângulo Leis de Incentivo – patrocinadores – empresas de produção, de captação e congêneres (empresas, sempre elas e seus empresários são os que se beneficiam - legal ou ilegalmente - dessa Lei de Incentivo, nunca os artistas e a cultura brasileira). Sabemos, todos sabem, mas ninguém fala nada!

Cercar dinheiro público na prestação de contas... Parece piada, mas é de chorar!! Todos sabem como uma papelada dessas pode ser “fabricada”. É sabido e corrente, no país todo, o comércio de notas frias para as “prestações de contas” ao MinC. O papel aceita tudo, não? Depois, como recuperar o dinheiro que já se foi, todo? Com acórdãos do TCU, exigindo devoluções? Sentados por detrás de suas mesinhas, esses burocratas da cultura sequer imaginam do que se tratam as atividades de criar, produzir e realizar qualquer coisa de útil, muito menos um espetáculo do porte deste que boicotaram, com mais de trinta profissionais envolvidos.

E que, além disso, foi realizado com R$ 150 mil, o que não deixa de ser uma boa grana quando se sabe que foi jogada fora sem que nós, o público pagante (incentivante), tívessemos sequer a chance de avaliar o nosso “investimento”, mas que é uma merreca se comparada às verbas milionárias que no MinC – temos fontes seguras - são facilitadas a “eleitos” para certos “espetáculos” à meia-boca que inundam da pior picaretagem a maioria dos teatros brasileiros.

Eis que, quando algo verdadeiramente artístico fura o bloqueio da burocracia oficial e logra realizações culturais de fato importantes e conseqüentes, o “sistema” entra em pânico e se vale de toda a sorte de estratagemas, desde mesquinhas exigências processuais (Kafka) até sabotagens e boicotes institucionais, diretos ou indiretos, por força da influência que exerce nos demais mecanismos de poder da sociedade, “patrocinadores” e imprensa inclusive, para impedir que tais iniciativas prosperem e vinguem perante a opinião pública.

Este caso revela o tipo de realização (e de posicionamento político) que de fato ameaça o statu quo e a Gazeta se dispõe a torná-lo público, pois é certo de que se trata de um entre milhares. Quantos são esses milhares, ainda não há como saber; casos semelhantes chegam ao nosso conhecimento por diversas vias, mas, em geral, as vítimas de tais descalabros não possuem meios nem forças para se manifestarem, e temem por seus futuros profissionais.

Assim, a Gazeta se coloca entre elas para publicar em nome delas e em defesa delas sem que elas sejam ameaçadas pela prepotência desta Secretaria do MinC. A bola agora está com o senhor ministro! Precisamos saber o que se está passando no MinC a respeito das nossas pessoas, das pessoas como as nossas, dos nossos projetos e dos projetos como os nossos. A Resistência Cultural brasileira quer e precisa saber! E o senhor ministro nos deve sérias explicações. Na verdade, quem está precisando prestar contas urgentes ao país é o MinC e a sua política de “incentivo cultural” coordenada por esta Secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura, a partir de uma legislação que já completa duas décadas de vigência sem consignar à nacionalidade um só feito artístico que a faça, plena e satisfeita, orgulhar-se de si mesma.

Disto podemos esperar sentados. Ninguém duvida que o ministro e o ministério da Cultura não estão nem aí para a produção artística autêntica e nacional. De tais protestos eles costumam debochar como “esquizóides” e atirá-los aos abismos arquivísticos da “coisa” pública. É a postura de “deixar como está para ver como é que fica”. É mais do mesmo – a paralisis da expressão do pensamento nacional, para a qual, em verdade, prestam serviço pela omissão venal e pela sabotagem a fim de facilitar a invasão do Império em nossas ricas terras, culturas e cultivos.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)

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