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Gazeta em forma de e-meio 42 (3/6/2008)

O renascer do idiota social

Há vozes na academia, na política e nos meios de comunicação que tergiversam sobre os fatos do continente. São parte da ação ideológica neoliberal para impor relatos maniqueístas tendentes a despojar as pessoas de sua memória histórica republicana. Manipulam a realidade segundo convenha a seus interesses. Neste horizonte, os autênticos estadistas, líderes políticos, sindicalistas e dirigentes de movimentos sociais que se preocupam com os problemas do povo e com os interesses nacionais são imediatamente tachados de lobos em pele de cordeiro. O mundo se apresenta dual: a ordem e o caos; a luz e a escuridão; a economia de mercado e o estatismo socialista; a globalização e a autarquia. Paz e segurança versus terrorismo e insegurança. Estabelece-se uma linguagem para atacar as “hordas” anti-sistêmicas e um itinerário cuja meta é o aniquilamento e a destruição do não alinhado, do diferente, do inconforme.

As principais armas utilizadas são o liberalismo doutrinal, o pensamento conservador, a sociobiologia, a desarticulação da teoria, a perda da referência política e o desprezo pela razão. Apresentam-se como uma frente única para a conquista do novo éden. Suas imagens são as bem-aventuranças do capitalismo e seus megaprojetos. Obras faraônicas de adoração e peregrinação são totemizadas para satisfazer os novos donos do planeta. Urbanizações de luxo, campos de golfe, torres de centenas de metros, etc. A felicidade completa, cuja máxima expressão consiste em erguer centros comerciais em que, neles, as pessoas possam viver e morar. São os autênticos canteiros das virtudes do mercado. Templos do consumo onde encontramos hotéis, restaurantes, cinemas, bancos, ginásios esportivos, joalherias, agências de viagem, supermercados... A imagem perfeita para a atual era do consumidor que vive em seu interior adaptando-se a seus códigos. Sua personalidade se flexibiliza para adorar marcas comerciais de fast foods, de peças de vestuário, de carros e de tudo mais. Ao mesmo tempo, em seu espírito vai se consolidando a mutação do cidadão em idiota social. É o processo de atomização e perda de identidade coletiva. A substituição da memória social pelo desejo de compra e pelo autismo individualista. O retorno do Idion aristotélico.

A partir de tal lógica, os manipuladores e seus lacaios de todos os níveis tratam de produzir o maior número de idiotas sociais possível. Buscam dar continuidade ao processo: os consumidores devem sentir-se no paraíso terrestre. Nele, as expectativas, os desejos, as esperanças, as metas de mudanças e as depressões devem ser superadas individualmente.

O remédio para a angústia, consumidor, está na compra e venda de objetos disponíveis nas lojas e na sua imaginação. Se o perseguem no trabalho, se o despedem do emprego, se o violentam, se o exploram, se o alienam socialmente, nunca reaja coletivamente. Não se proponha jamais a um projeto alternativo e libertário, não critique o sistema, não aluda aos mecanismos de dominação. Solucione o problema pela via individual; faça uma queixa no programa de defesa do consumidor e vá ao shopping center mais próximo, compre uma camisa, uma gravata, corte o cabelo ou mude de penteado. Satisfaça algum desejo culinário e curta o seu corpo: chocolate, sorvetes, hambúrgueres; se estiver muito estressado e necessite de relaxar-se, procure uma yoga no mesmo shopping e depois vá à agência de viagens ao lado e contrate umas férias em praias exclusivas, com tudo incluído, até a fonte da juventude. Resortes e terapias de última geração a preço de ouro, mas em cômodas prestações mensais. Se tiver necessidades erótico-festivas, pense em turismo sexual: África, Ásia, Europa Oriental, América Latina, Oceania, os cinco continentes ao seu dispor.

Você não existe como cidadão, não possui dignidade, nem memória histórica, nem vontade – você é um consumidor. Em definitivo, seu corpo está completamente entregue ao mercado, que agora o possui de maneira integral, dos pés à cabeça.

Isto vale também para os pobres, aos quais recomenda-se o autor mais preocupado por eles, Hernando Soto, e seu livro Outro caminho e o mistério do Capital. Para ele, também os pobres podem participar da bacanal a seu modo. Devem capitalizar sua miséria, gozar a felicidade de passear nos shopping centers e projetar suas frustações nos desejos de mudança de status. Devem transformar suas economias em bens de capital; os centavos obtidos nos sinais de trânsito com a venda de miudezas os transformarão nos empresários do futuro; seus filhos, criados nas esquinas das ruas asfaltadas e imundas dos grandes centros urbanos, serão astros do Cirque du Soleil. Devem alimentar seu otimismo sob a ótica da igualdade de oportunidades e da ascenção social iminente. É o discurso ideológico da perseverança, acompanhado da “livre iniciativa” e da preparação no ensino pago, fatores suficientes para romper o círculo da pobreza. O grande mito do capitalismo que tão bons resultados traz a seus ideólogos e acólitos.

Nesta condição, aconselha-se a dispensar pesos mortos. Não pense, deixe-se levar pela onda de consumo e transforme-se em um consumidor responsável, sempre em dia com suas obrigações e deveres. Assim, obterá dividendos e viverá relaxado. Aceite com gosto as mensagens que o mercado lhe oferece, não só as publicitárias, também as jornalísticas. Acredite piamente que um governante corrupto e mentiroso como, por exemplo, o atual presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, é um democrata exemplar apesar das provas que o vinculam a narcotraficantes e a paramilitares que o reconhecem, por vários testemunhos dados à Justiça daquele país, como mandante e responsável por chacinas e massacres de centenas de compatriotas. Ou que a guerra do Iraque, promovida pelo governo mais democrático do mundo, é uma ação humanitária que nos protege de hediondos terroristas barbudos que usam turbantes e vivem nas cavernas do Afeganistão. Pense na imaculada ação dos governos sistêmicos de sua cidade, seu estado, seu país, e não nas ligações deles com máfias ou nas participações deles nos altos “negócios” de golpes no Erário e venda da pátria. Não acredite na origem espúria dos mandatos de seus governantes eleitos; aceite até que houve irregularidades, não fraudes eleitorais, eufemismo para não cair na degradação mais absoluta, só superada por algum funcionário público que seja pego transportando dólares nas cuecas.

Sem dúvida, tais governantes não vacilam em se definir como portadores da moral do mercado, que não é outra senão a do idiota social. Por ela, perderam a dignidade e a condição de cidadãos. Optaram por anestesiar a consciência e projetam o paraíso do consumo como a nova solução final. A política deles consiste em estabelecer-se numa casta de governantes medíocres de pensamento sistêmico. Plutocratas manipuláveis pelos que manejam as alavancas do poder real, eles são submissos perante os fortes e acabam humilhados e sodomizados no mercado. O imperialismo os conhece bem; converte-os em idiotas sociais e os tornam governantes ou próceres da política lacaia que o serve em todas as nações que coloniza e saqueia, incluindo-se suas próprias nações matrizes..

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Tradução livre e adaptada por este gazeteiro do texto El renacer del idiota social, de autoria do articulista de opinião Marcos Roitman, publicado em 1/6/08 no diário mexicano La Jornada e no site Rebelión.

A tradução foi tão livre e tão adaptada do texto original que o gazeteiro optou por não dar-lhe aspas; não é justo que o autor do original seja responsabilizado por tantas e não autorizadas alterações de seu texto. A idéia foi a de aproveitar o excelente argumento fundamental do texto, que foi escrito como denúncia da realidade local, com sotaque regional e citando nomes e fatos da política mexicana, para transcendê-lo a um plano mais universal e adaptado à nossa realidade.

Se o leitor quiser conhecer o original em espanhol, vá ao endereço:
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=68210&titular=el-renacer-del-idiota-social-


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com/)

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