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Gazeta em forma de e-meio 35 (27/4/2008)

Novos instrumentos de censura

Infelizmente, esta Gazeta sai hoje sem revisão porque o nosso revisor, o músico e jornalista Frederico de Oliveira, está impedido de ter acesso prévio ao conteúdo aqui veiculado, por ordem judicial. Um despacho que a Gazeta recebeu de Alfenas, por Internet, encaminhado por amigos dele (cujos nomes pediram para não mencionar) informa o seguinte:

“Juiz de Alfenas, MG, censura blog que denunciou ilícitos públicos

“Uma liminar expedida pelo juiz Nelson Marques da Silva, do Juizado Especial de Alfenas, MG, impôs serem retiradas do ar matérias no blog O Apito (www.thetweet.blogspot.com) que relatavam irregularidades praticadas pelo juiz Paulo Cássio Moreira, da 2ª Vara Cível da mesma cidade. O autor do blog, Frederico Mendonça de Oliveira, o Fredera, conceituado músico, colunista do jornal diário O Pergaminho (Formiga, MG) e colaborador da revista Caros Amigos (São Paulo), foi também impedido de falar em quaisquer meios de comunicação e de se pronunciar publicamente sobre o assunto, sob pena de multas ou de responder por desobediência.

“O juiz Paulo Cássio Moreira moveu contra Fredera uma queixa-crime por calúnia e difamação e uma ação indenizatória por danos morais, pelo fato de o músico ter denunciado à imprensa ilícitos públicos praticados anteriormente pelo querelante ao assumir uma área verde no bairro Jardim Aeroporto transformando-a em praça pública. A alteração gerou transtornos vários e litígio aberto na vizinhança. A transformação ignorou os requisitos exigidos pela Lei Orgânica do Município para a execução de qualquer obra pública.

“O músico foi citado às 22:20h da sexta-feira 11/4 passada, inteirando-se então da liminar, que entrou em vigor 24 horas depois. A liminar impediu Fredera de expor o problema na tribuna da Câmara dos Vereadores na noite da segunda-feira seguinte.”

A Gazeta falou com Fredera por telefone e ele disse que não pode “dar um pio sequer” sobre o assunto, senão corre o risco de “ir em cana”. Está, portanto, devidamente amordaçado por este novo e inusitado instrumento de censura: a liminar, cuja íntegra do texto nos foi também enviada de Alfenas.

O editor do jornal O Pergaminho, Manoel Gandra Fonseca, nos informou por telefone que Fredera é assíduo colunista do seu jornal e que não é a primeira vez que se vê em apuros por suas “corajosas denúncias”. “Ele goza de muito prestígio entre os leitores do jornal, ao ponto de ter sido defendido gratuitamente, em querela anterior, por advogados que nem o conheciam pessoalmente e que conseguiram a sua plena absolvição em juízo”, nos disse Gandra. O editor atribui esta liminar ao corporativismo que grassa entre os membros do Judiciário. Seu jornal publicou na íntegra todas as matérias que estavam no blog de Fredera e em nenhum momento o demandante, juiz Paulo Cássio Moreira, solicitou direito de resposta ao jornal, que é o instrumento legal correto e aplicável ao caso. “Se ele fizesse isso, nós daríamos à sua réplica o mesmo espaço que demos às denúncias, como estabelece a legislação, e creio que Fredera também não negaria o mesmo espaço em seu blog”, acrescentou o editor.

Falamos, também por telefone, com o juiz Paulo Cássio Moreira, que nos disse que não dá entrevistas sobre o assunto e nem autoriza nenhuma publicação em seu nome. Perguntado porque não se valeu do direito de resposta ele nos deu um rotundo “nada a declarar”. Quanto à questão da Lei Orgânica do Município, disse-nos que nos dirigíssemos à Prefeitura Municipal de Alfenas, que é a responsável pela obra; ele apenas doou “recursos materiais para que se fizessem os melhoramentos no bairro”.

No que diz respeito à liminar concedida pelo juiz Nelson Marques ao seu colega, não é preciso ser advogado para enxergar naquele documento uma evidente extrapolação de competência, assim como a carência de fundamentos factuais e jurídicos, numa clara parcialidade na decisão de penalizar o jornalista. Há nela o seguinte trecho:

“Partindo-se dessas premissas, ainda que o réu seja jornalista e esteja exercendo o direito previsto no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, verifica-se que seus argumentos estão carregados de subjetivismo e envolvimento pessoal, com possibilidade de induzir o leitor à conclusão de que o autor abusa do poder na comarca de Alfenas, não respeitando a legislação vigente para a realização de obras urbanas.

“Assim, permitir que o réu continue atacando o autor por qualquer tipo de manifestação pública, sob o manto da liberdade de expressão, seguramente configurará gravíssimo precedente, visto que a prova produzida não deixa dúvida de que o demandado não contém limites em suas articulações e não está exercendo o jornalismo apenas para informar os leitores, do contrário não terminaria o texto anunciando “mais um capítulo” indicando que continuará usando tal expediente.”

Temos aí um juiz a nos dar lições de jornalismo e de liberdade de expressão, e a nos dizer que o exercício do jornalismo é “apenas para informar os leitores”. Nos cassa, assim, o direito de opinião, de investigação e de denúncia, que são atributos elementares ao exercício de um jornalismo digno e, de fato, informativo.

Enfim, a liminar, que se revela providencialmente concisa para quem a redigiu (ao todo, uma só lauda de texto), não se sabe se por falta de substância para fundamentar ou por limitações no domínio da redação, tasca a mordaça no jornalista com rara ferocidade:

“Por tais razões, convencido que estou da verossimilhança dos fatos articulados na inicial, com suporte no artigo 273 do Código de Processo Civil, defiro a antecipação dos efeitos da tutela para:

“1 – Determinar que o réu retire de seu blog na internet (The Tweet - O Apito) todas as matérias que se referem ao autor e aos melhoramentos ocorridos na área de recreio do Jardim Aeroporto, direta ou indiretamente, no prazo de 24 horas, contados de sua intimação, sob pena de responder por multa de R$500,00 por dia de atraso.

“2 – Determinar que o réu, a partir de sua intimação, se abstenha de publicar em qualquer meio de comunicação ou divulgar em público matérias ou pronunciamentos sobre o assunto em referência, direta ou indiretamente, sob pena de responder por multa de R$500,00, multiplicada pela quantidade de vezes que infringir a obrigação de não fazer

“3 – Intimar o réu que o descumprimento da liminar também configurará crime de desobediência.

“Expeça-se o mandado de citação e intimação com urgência. Intime-se (Alfenas, 11 de abril de 2008; Nelson Marques da Silva)”

Fredera foi intimado às 22:20h, do mesmo dia 11 de abril, sexta-feira, a tempo, portanto, de ser impedido de fazer um pronunciamento sobre a questão na Câmara de Vereadores do Município, em audiência que fora marcada para a segunda-feira, 14 de abril.

O flagelo da censura no Brasil, que no passado fora abertamente assumido pelo regime militar como uma instituição de “serviço” público, com a presença de censores credenciados nas redações de imprensa, nos teatros e cinemas, nas editoras de livros, etc, passou a ser, nos anos 80, exercido pelos poderes econômicos de forma dissimulada e discreta, porém, muito mais eficaz e onipresente.

Na época, um meio de comunicação para ter real influência, penetração e alcance de massas exigia uma onerosa infra-estrutura corporativa e tecnológica somente acessível a grandes grupos econômicos e ao Estado. Como ao Estado lhe foi usurpado o papel de ator econômico pelo sistema neoliberal que nos foi imposto, todo o conteúdo de comunicação de qualquer alcance ficou sob controle de grupos privados e a pleno serviço de seus interesses imperialistas e hegemônicos.

Com o advento de novas e mais acessíveis tecnologias de comunicação e da Internet, criada pelo mesmos poderes econômicos para outra finalidade, mas que, afinal e por vários motivos, acabaram por perder o controle dela enquanto veículo de comunicação, novos instrumentos de censura começam a ser experimentados para calar e amordaçar a verdade e o pensamento crítico que agora logram penetração efetiva no público e até alcance mundial.

O Poder Judiciário e outras instâncias dos poderes públicos passaram a ser utilizados disfarçadamente como instrumento de censura.

José Guilherme de Castro, ex-integrante da Rede Abraço (Assoc. Brasileira de Rádios e TVs Comunitárias) e atual membro de um coletivo comunitário que dirige a TV Caracol em uma favela de Belo Horizonte, denuncia que inúmeras rádios e TVs comunitárias foram fechadas arbitrariamente em todo o Brasil, e, às vezes, com extrema violência policial, com base em liminares do mesmo tipo e que já há mais de 5.000 pessoas condenadas por se valerem de meios de comunicação comunitários “sem autorização da Anatel”, porque lhes é impossível obter tais autorizações naquele órgão regulador que é controlado pelos grandes e poderosos meios de comunicação da iniciativa privada.

Em sua breve existência, a Gazeta já registrou dois casos sintomáticos destes novos instrumentos de censura:

O do governador do Paraná, Roberto Requião, bem semelhante ao do Fredera (só que em outra esfera de poder, por motivos políticos, e as multas eram de R$ 50.000,00) e que temos sido informados regularmente pelos despachos de Beto Almeida na Internet.

O do jornalista e vereador do Rio de Janeiro, Pedro Porfírio, que teve o mandato de tribuno e parlamentar cassado por tempo indeterminado a partir de arbitrária liminar obtida em instâncias cíveis, à revelia, inclusive, de decisões a seu favor tomadas em instâncias da Justiça Eleitoral, e do qual também temos sido informados por suas remessas via Internet.

Agora registramos mais este. Prometemos, dentro das nossas possibilidades, manter o leitor da Gazeta informado. Mas é preciso urgentemente acabar com esse flagelo no Brasil e este gazeteiro faz um apelo aos leitores que divulguem e debatam essas informações e exerçam, por todos os meios que alcancem, o maior e mais contundente protesto que, pela força de uma opinião pública bem informada e de resistência, ponha, enfim, um paradeiro nesses absurdos.

E, “durma-se com um barulho desses”, como dizia o nosso querido Ari Barroso.

Abraços

Mario Drumond


Revisão: Proibida a Frederico de Oliveira por decisão judicial, uma vez que poderia ser considerada como co-autoria ou como um “pronunciamento”; a Gazeta não tem substituto. (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)

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