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Gazeta em forma de e-meio 55 (8/8/2008)

Uma campanha que mal começa ou uma campanha que começa mal?

Foi dada a partida. Não, não é a abertura dos Jogos Olímpicos; é a campanha eleitoral dos candidatos a prefeito e a vereador em todo o país. Porém, guardadas as proporções, o signo da “abertura” muito se assemelha em ambas as “competições”.

Pois foi como uma abertura de competição esportiva que se inaugurou a campanha eleitoral deste ano: a “festa da democracia”, disseram. Aqui no Brasil tal festa não se faz nos espaços públicos do poder político e de cidadania; ela se faz nos estúdios das grandes redes de televisão: verdadeiras usinas de enganação. Nela festejam jornalistas amestrados, publicitários, designers gráficos, assessores de candidatos, prestadores de serviços de campanha e toda uma penca de marqueteiros e outros picaretas de entorno que vão repartir, em fatias proporcionais à posição hierárquica do envolvimento de cada um, o “bolão” gordo da campanha. Os candidatos participam no papel central do evento, não como atletas que disputarão medalhas em acirradas competições, mas como “calouros” que disputarão os votos da platéia do show milionário, e cujos scripts já se pretendem definidos em roteiro pré-aprovado pelos patrocinadores, estes sim, os detentores do poder real nessa democracia virtual, e que não precisam ser votados.

A democracia virtual é um tipo de democracia de “última geração”, na qual os eleitores devem estar diante das telas da emissora que está dando a festa para que façam uma audiência que justifique as verbas publicitárias auferidas. É só o que se necessita dos eleitores, além de fazerem filas a cada dois anos nas mesas de votação para exercerem o sagrado “direito do voto”. Depois de cumprido este dever cívico e democrático, que paguem os impostos e taxas em dia e não criem complicações. De tudo o mais cuidarão os patrocinadores e os protagonistas da festa, os eleitores podem ficar descansados.

Foi neste signo e na estética de mau gosto que caracteriza o “padrão de qualidade” das emissoras globais e globalizadas que, na semana passada, deu-se, numa de nossas grandes redes de televisão, o chamado “debate dos candidatos”, o nome da festa inaugural da campanha deste ano. Chamam de “debate” a um painel de falas dos candidatos - seqüenciais e rigorosamente minutadas, entremeadas de intervenções do moderador e jornalistas convidados -, que são pré-acordadas num regulamento que arremeda algo da fórmula fala-réplica-tréplica, sem que seja necessário que haja relação de conteúdo entre os três elementos da fórmula. Com duração de duas horas, pelos cálculos da Gazeta, a cada candidato coube um espaço no “debate” entre seis a dez minutos, somando-se o total de todas as suas falas, réplicas e tréplicas.

Houve um “debate” para cada capital, todos realizados no mesmo dia e hora, com as mesmas regras, a mesma estética, o mesmo tudo; até os candidatos, com poucas variações e alguma cor local, parecem ter sido os mesmos, por isso este comentário é “válido para todo o território nacional”. Senão, confira o leitor-eleitor: vamos ao que a Gazeta, em árduo esforço de reportagem, acompanhou de cabo a rabo - o “debate” dos candidatos a prefeito de Belo Horizonte.

Aqui apresentaram-se oito candidatos, cada um representando uma sopa de letras partidária denominada “coligações”, quase todas elas, marqueteiramente falando, “com viés de esquerda”. Mas, na democracia virtual, o que menos interessa é a filiação partidária e ideológica do candidato. Também é de pouca ou nenhuma importância o passado ou a história a que se vincula a biografia dele. Certa feita, numa CPI, lecionou, de sua fulgurante cátedra, um conhecido marqueteiro de várias campanhas bem sucedidas: “O que interessa é a proposta do candidato”.

A redação dessa “proposta” é encomendada aos marqueteiros pelos financiadores e patrocinadores do show (bancos, empreiteiras, empresas de ônibus, de coleta de lixo, entre os principais). De acordo com os arquivos da Gazeta, em todas as eleições municipais dos últimos trinta anos, com poucas variações “criativas” ou por orientação de “pesquisas”, a proposta é a seguinte: resolver todos os problemas de segurança, acabar com a criminalidade e o desemprego, resolver todos problemas da saúde pública, do ensino público e do transporte coletivo, construir o metrô e todas as suas linhas, realizar todas as obras de infra-estrutura necessárias, resolver todos os problemas do trânsito urbano, sanear as finanças do município, etc, etc, etc. A cidade, em quatro anos, se tornará uma genebra brasileira, a melhor cidade do país, cuica do mundo.

Não raro, um mesmo marqueteiro-maior é o responsável pela “proposta” de dois ou mais candidatos através de subcontratados marqueteiros-menores. No caso de Belo Horizonte, nada menos que cinco candidatos apresentaram-se no “debate” com a mesmíssima “proposta” (ver parágrafo acima). É bem provável que o laquê no cabelo do candidato da coligação PSB, PSDB, PT & etc. tenha sido aplicado pelo mesmo cabeleireiro do candidato da coligação PMDB & etc. A assinatura do cheque que pagou o ateliê de alta costura que cortou o tailleur vermelho e rosa da candidata da coligação PCdoB & etc. talvez seja a mesma da que pagou o alfaiate da moda que cortou o terno do candidato da coligação DEM & etc. e – quem sabe? – também o do candidato Periquito (não me lembra a coligação dele, só o nome do bicho).

No contexto da democracia virtual, a fim de que ela fique parecida com democracia mesmo, é preciso disfarçar os sectarismos que a ela são inerentes, intrínsecos ou nativos. Assim, permite-se a inclusão, no show, de candidatos não sistêmicos, isto é, candidatos de procedência ideológica radical, seja de “esquerda” ou “direita” históricas, os quais, na ilusão de estarem se valendo de um “espaço estratégico de comunicação com as massas”, derramam sobre os pobres eleitores suas cartilhas e catilinárias panfletárias, que, por sua vez, serão tachadas de sectárias pelos candidatos sistêmicos.

Em Belo Horizonte, apresentaram-se dois candidatos nessa condição para o “debate”: uma, da coligação PSTU & etc., e outro, da coligação PTdoB & etc. (se não me engano). Numa avaliação mais rigorosa, o acima mencionado candidato Periquito também poderia ser enquadrado nesta categoria, na vertente da “direita histórica”, hoje representada pelo neomovimento estudantil ou movimento estudantil burguês (o que porventura lhe teria possibilitado o acesso ao alfaiate dos candidatos sistêmicos).

Mas eis que aqui em Belo Horizonte – e acredito que tal fenômeno possa ter se repetido nas demais capitais –, para surpresa geral, inclusive dos organizadores da festa, apresentou-se um candidato que não se enquadrava nas categorias previstas para o show; era um candidato simplesmente... político!

Um canditado da democracia real e pouco afeito à virtual. Ora, um político precisa de tempo para falar, daí porque a surpresa de ele estar ali – como teria um político da desaparecida democracia real conseguido penetrar e se valer de um espaço desta vigente democracia virtual, onde os tempos de fala são minutados e portanto não há a mínima condição de se fazer um bom e generoso discurso? Mas o candidato teve a manha e era escolado de campanhas anteriores. Suas intervenções, apesar de prejudicadas pelo “formato” do show, abriram uma janela de oxigênio político na atmosfera rarefeita da festa, que, se não fosse por ele, se tornaria irrespirável antes da metade dela, e não teria sido possível a este gazeteiro acompanhar o programa todo, façanha esta que já disse ter conseguido.

Este candidato revelou-nos, por sinal, em sutil denúncia, a consciência plena de estar ali pronunciando-se a partir de uma situação irreal, virtual; e o fez, dali, direcionando-se para a realidade mesma, a nossa, a dos telespectadores:

“Há duas cidades aqui”, disse: “uma que está nas propagandas, nas telas das mídias e nas falas destes candidatos, que é a cidade virtual; e a outra, a que está nas filas de ônibus, nas filas dos postos de saúde, das matrículas das escolas públicas, a que está nas ruas e nos morros, à pé e em busca de um mínimo de dignidade profissional e existencial; esta é a cidade real e é a cidade da qual eu pretendo ser o prefeito”.

O nome deste candidato é Sérgio Miranda.

A Gazeta já o tem mencionado nas últimas edições. Ele saiu do PCdoB por não se permitir permanecer na linha entreguista e adesista que os militantes daquela sigla abraçaram nos últimos anos, em lamentável e imperdoável oportunismo, capaz até de trair uma das maiores conquistas do proletariado nacional, que era o direito pleno de aposentadoria. E filiou-se ao Partido fundado por Leonel Brizola, um partido que, com todos os conhecidos defeitos e restrições, permanece fiel à democracia real e que, por isso mesmo, abrigou dissidentes de partidos que deixaram de ser autenticamente partidos políticos, como Luis Carlos Prestes, Oscar Niemayer e muitos outros - o PDT.

Façamos deste mau começo de campanha uma nova campanha: uma campanha que mal começou mas está no pensamento ou na intuição dos eleitores brasileiros que estão por aqui da chatice dessa democracia virtual - a campanha pela democracia real.

Se ela se afirmar, haverá de ser vitoriosa neste pleito .

Toda cidade do Brasil deve ter um Sérgio Miranda, (e)leitor.

Se você mora numa capital, você deve tê-lo notado no “debate”, semana passada. É o que não tinha laquê aplicado aos topetes brilhantes, não envergava vistosos ternos de alfaiate ou tailleurs de alta costura, nem estava lá panfletando como “sectário” de “direita” ou de “esquerda”. É o que parecia estar ali como um peixe fora d’água, o que mais se assemelhava a um político da política verdadeira - uma espécie em grave perigo de extinção: o candidato com passado, história e experiência política, com idéias amadurecidas na realidade do nosso povo, luz própria para falar sem necessitar de marqueteiros e o que não admite compromissos com as empresas patrocinadoras nem com as emissoras realizadoras do show.

Se você não mora numa capital, você deve saber qual é ele.

Vote nele e acabe com essa democracia virtual de uma vez por todas. Caia na real.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)

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