Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de e-meio 26 (10/3/2008)

Terrorismo x humanismo

2. Humanismo

“Eu não quero que me dêem um mundo feito. Eu preciso fazer o mundo.”(Ludovico Silva)

A Venezuela era, até 1999, um país que só surgia nos noticiários internacionais por suas vitórias nos concursos de Miss Universo ou nas páginas de Economia dos jornais, pela importância de suas reservas de petróleo. Era um país exportador de petróleo e importador de tudo o que suas oligarquias e classes médias precisavam para se fazerem uma cópia mal feita de Miami, numa versão tropical do american-way-of-life. Até as alfaces eram importadas dos EUA. No mais, era como qualquer outra banana republic dos trópicos: 80% da população excluída e sob o descaso, a repressão e a violência do próprio Estado, mal sobrevivendo nos purgatórios do analfabetismo, da doença e da miséria, apesar de ocupar um território muito rico e privilegiado pela natureza, sob todos os aspectos, mas quase que completamente entregue a interesses capitalistas dos EUA e da Europa.

Em 2 de fevereiro de 1999, toma posse o recém eleito presidente Hugo Chávez. Sua eleição se deveu a diversos fatores históricos e, de certa forma, foi “permitida” por um sistema viciado na fraude e no arranjo, uma vez que, naquele momento, a presidência do país era um grande rabo de foguete por causa da crise econômica e dos baixos preços do petróleo. Seria, pois, uma boa estratégia entregá-la temporariamente a alguém “de esquerda” para que pagasse o pato pelos descalabros neoliberais fomentados ao longo de mais de 40 anos de governos entreguistas “de direita”. Ademais, ninguém sabia quem era esse Hugo Chávez como político, pois aquela fora a sua primeira experiência eleitoral, e previa-se que, uma vez no poder, seria facilmente cooptado a colaborar no papel que lhe preparavam, mediante razoável compensação pessoal que não lhe seria negada no caso de bom comportamento. Bastava-lhe seguir a velha cartilha escrita pelas oligarquias em 1961, intitulada Pacto de Punto Fijo (nome da cidade onde o Pacto se deu), e deixar o barco correr.

Mas, para surpresa geral, Hugo Chávez não topou o negócio. Non, non, non y non! – dizia a todos os que o assediavam, aflitos por sua imediata adesão ao Pacto. E a estes ainda retirava as mordomias que o poder tradicionalmente lhes concedia e mandava auditar as contas tributárias de seus negócios e empresas. Uma heresia! Os oligarcas teriam de pagar impostos, como se fossem uns classe média quaisquer! E isto era só o começo.

Eis que o tal Hugo Chávez continuou a falar como se ainda estivesse em campanha: “educação para as massas”, “saúde gratuita para o povo”, “distribuição de renda”, “reforma agrária” e outras velhas políticas fora de moda; até em “socialismo” ele falava! Imaginem, ele queria ressucitar Simon Bolivar, aquele jurássico Libertador!

Mas, pior, ele não só falava, ele fazia! De repente, a Venezuela, que era uma das maiores inimigas históricas da Revolução Cubana, passa a a ser a sua mais fraterna aliada. Uma avalanche de médicos e professores cubanos é importada da Ilha para cobrir as falhas estruturais abertas durante meio século de descasos. A Venezuela não tinha médicos nem professores suficientes para atender as massas, e os que tinha eram formados na lógica neoliberal dos “negócios privados”, portanto, com pouquíssimas exceções, não serviam para nada. O governo Chávez cria então as famosas Missões sociais, forças-tarefas para o atendimento emergencial dos setores excluídos da sociedade, e nelas aplica boa parte do orçamento nacional, retirando, assim, vários privilégios orçamentários para a “iniciativa privada”. É a guerra! É preciso derrubar imediatamente esse “ditador castro-comunista”! –, zurravam os velhos oligarcas. Achavam que podiam fazer isso com um simples peteleco no pentelho. Porém, outra surpresa: o bicho era esperto como um corisco, e ainda tripudiava sobre todas as frustradas tentativas de derrubá-lo.

E deitava e rolava. Criou uma nova constituição, de cunho francamente socializante, derrubou muitas das velhas e viciadas estruturas de governo e implantou novas, completamente desvinculadas de interesses capitalistas, mudou o desenho da bandeira, do brasão e o nome da República, direcionou sua política externa para o mais radical não-alinhamento com as políticas de Washington, traçou uma estratégia verdadeiramente democrática de poder, baseada em eleições e consultas populares freqüentes e em novos veículos de comunicação – criados e patrocinados pelo governo – que respaldassem a sua Revolução Bolivariana, incluindo os veículos comunitários; e propôs o debate mundial sobre o que ele passou a chamar de “Socialismo do Século 21”.

Nas Forças Armadas, deu início a um processo de revitalização e reorientação doutrinária, por sinal, uma completamente nova doutrina militar, anti-imperialista, nacionalista, bolivariana e revolucionária por excelência. Fez nomeações surpreendentes e radicais para os mais altos postos de comando e reformulou as antigas e mofadas estruturas entreguistas, algumas de mais de um século. Por sua origem castrense, Hugo Chávez não abriu mão do exercício efetivo do cargo de Comandante-em-Chefe das Forças Armadas, que exerce pessoal e intransferivelmente até hoje, com mão-de-ferro, ao contrário da maioria dos chefes de Estado, para os quais tal cargo não passa de um mero título constitucional. Orientada para ser uma força armada de defesa da Revolução, bem preparada para a chamada “guerra assimétrica” e de baixo custo orçamentário, Chávez estruturou-a em um pequeno núcleo profissional muito bem treinado (cerca de 300 mil profissionais em todas as armas) e uma reserva popular (voluntária) de grandes proporções (meta de 3 milhões de voluntários para 2010), ambos bem equipados e prontos a defender o território nacional da ameaça de qualquer invasor. Enquanto a invasão não ocorre, as Forças Armadas e as Reservas dão apoio à sociedade civil, seja em situações emergenciais (catástrofes naturais, grandes desastres, resgates, etc), seja nas logísticas de rotina e infra-estrutura civil onde a equipagem do Estado não esteja pronta ou não possa atender. Assim, as Forças Armadas da Venezuela conquistaram rapidamente a simpatia popular. Seus caminhões, navios e aeronaves são constantemente vistos resgatando reféns de situações difíceis, salvando vidas, ajudando no transporte dos alimentos e de cargas necessárias às comunidades, dando apoio a estas nas dificuldades e realizando operações humanitárias de toda ordem, e, para além das fronteiras, apoiando também as nações vizinhas que delas necessitem. Com isso, conquistaram não só a população do país como também fama e prestígio internacionais.

Mas, para as velhas oligarquias, as coisas tinham ultrapassado todos os limites. Era preciso chamar o Tio Sam e derrubar logo o “ditador”, custasse o que custasse!

E como tem custado caro a todos eles! Há nove anos e meio que – reunidos e desunidos num bloco auto-intitulado de “oposição” e regiamente financiados pelos EUA, empresas transnacionais e grandes empresas nacionais e de comunicação – os diversos setores reacionários das oligarquias venezuelanas não fazem outra coisa, da hora que acordam até a hora em que vão dormir, senão tentar sabotar, chantagear, intrigar, boicotar, interferir, obstruir, enfim, atuar, conforme todos os verbos que os léxicos castelhano e inglês possam definir, para destruir as iniciativas do governo e derrubar Hugo Chávez. Pelo tempo em que tudo isto vem se estendendo, para muitos, já se tornou meio de vida.

Mas Hugo Chávez e o governo da Venezuela ficam a cada dia mais poderosos, mais fortalecidos e mais influentes, interna e externamente. À revelia de toda essa catimba furiosa e furibunda das “oposições”, a Venezuela vem se transformando com grande rapidez num modelo de país para a América Latina e o mundo neste novo século.

É o cenário do humanismo. Desde que Chávez tomou posse, ninguém mais na Venezuela sofre violência de Estado, nem as “oposições”, mesmo quando se fazem extremamente violentas e terroristas. Trombam de frente com um verdadeiro estado de direito e por maiores e mais vis sejam os crimes que cometam, muitos deles nitidamente provocadores e desafiadores, como foi o caso do Golpe de Estado frustrado de abril de 2002, o Estado responde com o rito jurídico rigorosamente apegado à letra da Lei.

Em paralelo, o governo Chávez empreende a maior e mais radical mudança já promovida numa sociedade do porte da Venezuela que a História Universal possa ter conhecido, desde a Revolução Russa, de 1917.

A saúde pública, que, lá como cá e em toda a América Latina, não atendia nem 20% dos venezuelanos, já ultrapassou o atendimento integral e permanente de mais de 90% da população, de modo inteiramente gratuito, incluindo-se imigrantes residentes e estrangeiros em passagem pelo país ou que vêm até ele para tratamento ou socorro. O gigantesco sistema de saúde e prevenção contra a doença criado pelo governo nos últimos seis anos construiu mais de 12 mil novas sofisticadas unidades de saúde pública, além de recuperar as poucas que existiam, que vão desde as pequenas unidades de bairros, com médicos residentes, até super unidades hospitalares de atendimento geral e especializado de urgência, internação, reabilitação, acompanhamento, etc, que, pela qualidade e dimensões, são admiradas mundialmente. E os índices não se fizeram esperar: o mais significativo deles, a mortalidade infantil, caiu de 29 para 13 por mil nascimentos, segue baixando, e tem por meta equiparar-se ao de Cuba, que é hoje o menor do mundo, de 4 mortes por mil nascimentos (no Brasil está em 35 por mil). Como em Cuba, na Venezuela só é exigida uma condição para qualquer atendimento no sistema público de saúde: ser humano.

A educação pública que, tal como em toda a AL, havia sido completamente desmantelada e privatizada, foi vigorosamente recuperada e revitalizada (a Gazeta 6 já abordou o tema) através de um monumental investimento em recursos humanos e materiais, e hoje mais de 60% da população estuda gratuitamente em todos os níveis, do berçário (simoncito) às escolas técnicas e universidades. Um índice que aproxima aquele sistema de educação pública aos dos países mais desenvolvidos do planeta, e não só em termos quantitativos. A Escola Bolivariana atua num padrão de escola em tempo integral e oferece a mais avançada tecnologia de ensino que o dinheiro possa comprar, além de estabelecer perfis curriculares customizados, debatidos e estabelecidos pelos próprios corpos docentes, em todos os níveis, para adequá-los às próprias e específicas realidades regionais e nacionais.

Mas a maior de todas as conquistas da Revolução Bolivariana é a distribuição de renda. Enfim, o povo venezuelano começou a ver, pela primeira vez na sua História, a cor do dinheiro do petróleo. O governo Chávez resgatou, uma a uma, todas as injustiças sociais dos anteriores governos neoliberais. Restituiu e restaurou pensões, aposentadorias, direitos trabalhistas e sociais que foram retirados ou aviltados, criou empregos (o desemprego está entre 6 e 7%, em descenso, sendo um dos menores da AL) através de uma ampla e efetiva reforma agrária e de novas políticas produtivas industriais e comerciais, aumentou salários (é o maior salário mínimo da AL) e gerou benefícios que, ao lado da saúde e educação públicas gratuitas - além de outros fatores como o ambicioso programa de bolsas-de-estudos para as classes pobres e da substancial ampliação da rede de transportes coletivos sobre trilhos, baratos, em todo o território nacional - elevou os ingressos das famílias de classes D e E a tal ponto que o consumo de alimentos quadriplicou na Venezuela.

Não é necessário que esta Gazeta se estenda mais neste breve artigo, uma vez que as vitórias humanistas da Revolução Bolivariana da Venezuela já preenchem obras de grande fôlego em incontáveis publicações de toda espécie nos quatro cantos do mundo.

Porém, o aspecto triste deste artigo está em nosso país e pode ser verificado em nós mesmos. É a censura que nós brasileiros sofremos a respeito da Revolução Bolivariana da Venezuela, assunto que este gazeteiro considera o mais importante do mundo atual, e não se percebe o movimento de uma só palha em nosso país para mudar tal quadro.

Exceto o governador Roberto Requião, do Paraná, não há no Brasil um só político, força social ou poder pessoal que ouse enfrentar a ditadura midiática de que somos vítimas neste governo dito “dos Trabalhadores”. Nem os nossos intelectuais ditos “de esquerda” fazem algo. Há até os que fazem beicinho e chamam “caudilho” ou “populista” ao grande estadista Hugo Rafael Chávez Frías. Comportam-se como discípulos de Pedro Aleixo (“nada fiz, nada deixo; assinado: Pedro Aleixo”). Este gazeteiro tenta contribuir com o seu grão de areia, e podem estar certos os seus poucos leitores que o faz de modo absolutamente desinteressado, apenas por poder realizar o jornalismo em que acredita.


Na próxima Gazeta, o último item 3. A Guerra de 4ª Geração.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)

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