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Gazeta em forma de e-meio 33 (21/4/2008)

Momento raro

Momento raro para os que amam o teatro da arte e a arte da dramaturgia foi, sem dúvida, a encenação da nova montagem da peça O Arquiteto e o Imperador da Assíria em sua temporada de estréia em Belo Horizonte, que se encerrou ontem, depois de oito apresentações. Protagonizada pelas atrizes Soraya de Borba e Guga Barros, sob a direção de Ronaldo Brandão, a encenação superou as expectativas e revelou gratas surpresas.

A adaptação e a direção de Ronaldo Brandão, feitas a partir do texto original traduzido por Leyla Ribeiro e Ivan de Albuquerque (que dirigiu a célebre montagem no Teatro Ipanema dos anos 60/70) foram surpreendentemente felizes, mesmo para quem, como este gazeteiro, conhece de perto o seu trabalho.

Na adaptação, o diretor concentrou-se nos legados mais transcendentes e imortais do texto, que foi escrito em cima de uma época e para, dentro dela, ser instrumento revolucionário de uma geração, trazendo em si, portanto, toda uma estética e uma linguagem propositalmente datadas, mas que, pela transcendência e genialidade da composição, imortalizou-se. Assim, a peça que foi feita para três horas de duração (normal na época) foi reduzida a pouco mais de uma hora, num enxugamento radical do texto, porém, realizado com muita delicadeza e sensibilidade para que se mantivesse nele tudo o que lhe é essencial e atual, e se escoimasse o que fosse parte, recado, panfleto ou mensagem endereçada ao momento histórico para o qual fora escrito ou que, porventura, pudesse ser tido por déjà-vu.

Na direção, Ronaldo descolou-se da montagem de Albuquerque e, numa certeira visão de contemporaneidade, sem ambicionar inovações vanguardistas, valeu-se da sutileza, que, para Joyce é o instrumento mais nobre da criação artística. E, como sempre, seguro, firme e sem vacilos, o diretor conduz a platéia ao camarote daquela ilha imaginária que Fernando Arrabal realiza em seu texto como cenário e metáfora da solidão e do drama interior que dilacera a consciência pequeno-burguesa do cidadão comum, na decadente civilização capitalista em que se vê imerso e submetido, enquanto ser humano, sem saída à vista. A leitura de Ronaldo - que suaviza muito, quase elimina por completo a crueldade explícita que nos anos 60/70 marcou o texto e a montagem da peça – optou por sublinhar e dar definição aos aspectos mais sutis e delicados da idéia original, aquela que de fato se imortalizou, que é a dolorosa divisão existencial e interior ao indivíduo massacrado pelo sistema. Se, no texto, o bem e o mal intrínsecos à natureza humana estão presentes nos dois personagens que saem de dentro dele metaforizados, numa proposta de teatro de vanguarda (para a época), nesta montagem, a direção preferiu valer-se do mesmíssimo diálogo na tradicional (e funcional) dualidade dramática, bem nítida para o público, entre a origem primitiva, livre, mágica e sábia em si mesma do Arquiteto (o bem), e a realidade opressora, imposta, mecânica e arrogante do Imperador (o mal, o vilão).

Um prato cheio para as duas atrizes que, por serem mulheres fazendo papéis masculinos, enriqueceram a ambigüidade de crueldade e discurso amoroso na relação entre os personagens, que se revela sutil no texto original, e que a direção enfatizou.

Mais experiente, Soraya de Borba foi escalada para o papel mais difícil, o do vilão. Ela também logrou superar as expectativas de quem conhecia o seu trabalho e o interpretou com um apropriado artificialismo expressionista, linguagem que ela domina bem artística e tecnicamente, amplificando a traços fortes a teatralidade do vilão e solucionando, dramaturgicamente, a questão da crueldade sem necessidade de explicitá-la no verbal e no gestual. Guga Barros fez o Arquiteto com um realismo lírico bem humorado, e foi uma das gratas surpresas do espetáculo, pois o contraste, inclusive de linguagem, com o personagem do Imperador, tal como proposto pela direção, tornou o papel dela quase tão difícil quanto o de Soraya, e ela soube encarná-lo com fluência e facilidade.

O trabalho de ambas foi municiado pela produção com preparação corporal (Izabel Costa) e preparação vocal (Mariana Nunes), o que contribuiu com resultados visíveis e excelentes: há muito não se via uma encenação gestualmente tão expressiva e com tão boa dicção em teatro nacional como a deste espetáculo. No caso da preparação corporal, registrou-se uma coincidência histórica: a bailarina e coreógrafa Izabel Costa é um dos mais atuantes discípulos de Klauss Vianna, que foi quem orientou a preparação corporal dos atores de Ivan de Albuquerque (José Wilker e Rubens Corrêa), fato muito destacado pela crítica da época e que deu a Klauss um prêmio importante e renome nacional.

O cenário foi direcionado para a simplicidade e o convencional em sua arquitetura, mas contando com o traço, as cores e a delicadeza de composição do artista plástico Eri Gomes, mais uma vez muito bem sucedido no labor de seu pincel cenográfico, e a luz, feita pelo próprio diretor. O mesmo se pode dizer do figurino de Luiz Otávio Brandão, que criou indumentárias apropriadas às diferentes linguagens de expressão dos dois personagens. Nos dois casos, cenário e figurino, os artistas souberam aportar valores importantes à interpretação das atrizes e ao resultado cênico final. Outra grata surpresa foi a solução sonora e ambiental trilhada por Marcos Kacowiscz com adequação e boa qualidade musical-instrumental e de sonoplastia.

Enfim, foi uma montagem bem provida (mas sem exagero) de recursos financeiros, feita com direção segura, boa produção, um elenco e uma equipe artística e técnica competentes e capazes, onde até os contra-regras, que tiveram responsabilidade especial no truque cenográfico do tsunami, são dignos de elogios.

A produção, assinada pelo ator, diretor e produtor teatral Helio Zolini, só não leva a nota 10 por causa da divulgação, o ponto fraco da produção. É claro que boa parte do fracasso de divulgação é por culpa da nossa imprensa, a que já nos referimos em Gazeta anterior, mas, atualmente, nenhuma produção de espetáculo pode deixar as coisas só na mão dos “rapazes da imprensa”. Mesmo assim, a temporada não pode ser considerada um fracasso de público, pois recebeu a média de mais de 50 pessoas por apresentação, o que não é mau numa realidade em que o público em geral está manipulado pela mídia para só considerar ser teatro e só pagar ingresso a uma peça que tenha ao menos um ator global e assegure um mínimo de trinta gargalhadas por sessão, se possível, pontuadas por acrobacias circenses.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)

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