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Gazeta em forma de e-meio 39 (21/5/2008)

Sobre novos caminhos

- Sim, é importante acabar com a pobreza, pôr fim à miséria, mas a coisa mais importante é dar o poder ao povo para que ele possa combater por si mesmo. (Hugo Chávez, presidente da Venezuela)

Nossos “antropossábios” e “antropólogos-de-índio” (copyright by Beto Vianna) precisam começar urgentemente a estudar a política indigenista da Venezuela revolucionária e bolivariana. Sei que ao falar assim já cutuco fundo o orgulho besta de muita gente. Pois aqui ninguém se importa de copiar toda a porcariada forânea (sonora, audiovisual, visual, política, existencial, filosófica e o escambau); porém, quando se trata do aproveitamento de práticas de fato valiosas e positivas que lá fora se registram, aí, sim, temos o dever de “soberanamente” ignorá-las e sermos “criativos”.

O governo revolucionário da Venezuela, ao invés de “ajudar” ou tutelar os povos originários do país (que se contam para mais de mil) decidiu por transferir a eles o poder sobre tudo o que diz respeito às políticas indigenistas no país. A Constituição Bolivariana estabelece que os indígenas são cidadãos iguais a todos os demais em direitos e deveres, além de habitantes nacionais legítimos e ancestrais, anteriores à colonização européia. Reconhece suas terras como propriedades coletivas das respectivas comunidades que tradicionalmente as ocupam, reconhece legal e oficialmente suas línguas, suas culturas, suas medicinas, suas ciências, suas artes. O Poder Executivo foi dotado de um poderoso Ministério do Poder Popular para os Povos Indígenas, o qual tem os cargos de poder e de mando ocupados por indígenas, inclusive o ministro (atualmente uma indígena).

Ao Ministério foi dada carta branca junto às Forças Armadas Nacionais (FAN) para fazer valer o que decidirem os povos sob sua jurisdição, isto é, o que pode e o que não pode nos territórios indígenas, e a primeira decisão que tomaram aqueles povos foi determinar às FAN que expulsassem de suas terras todas as instituições religiosas, ONGs, missões “científicas”, “humanitárias”, etc, que viviam ali como piolhos e pragas, a infernizar a vida deles. Assim também decidiram sobre garimpos, minerações e demais atividades “empresariais” que detonavam, literalmente, seus territórios, habitats e meio ambiente.

Cumprida a decisão, em meio ao berreiro midiático histérico, local, regional, nacional e mundial, o ministério e as FAN apossaram-se de uma respeitável infra-estrutura que antes servia a todo o tipo de pilantragem que por lá se praticava sob o manto da ajuda e da tutela aos seus “primitivos e ignorantes” habitantes: contrabando, mineração e garimpo ilegal, tráfico de drogas, tráfico de órgãos humanos, roubos, assasinatos, genocídios e todas as demais barbaridades civilizadas. Dezenas de aeroportos, de portos fluviais, várias estradas vicinais, edificações e equipamentos de comunicação, de habitação e de transporte de que se valiam aqueles pilantras foram confiscados pelo governo e entregues ao ministério e às FAN para salvaguardar as regiões indígenas. Todo o contato de “civilizados” com as comunidades indígenas passou a ser coordenado pelo ministério e por porta-vozes e autoridades nomeadas pelas próprias comunidades, sob a proteção e vigilância das FAN.

A contrapartida não tardou a se verificar. Em pouco tempo, os “ignorantes e primitivos” autóctones demonstraram o que de verdade são e passaram a aportar inestimáveis contribuições à nacionalidade - na defesa de suas fronteiras; na preservação de suas nascentes, águas, florestas e demais riquezas naturais; na farmacêutica endógena; nas tecnologias agrícolas, desde o trato com sementes e raízes raras até aos diversos usos da mandioca (há um plano em andamento para a panificação nacional de substituição do trigo pela mandioca, que já é posto em prática nas FAN e nas escolas públicas); nas medicinas preventivas e curativas; e em quase todos os campos da atividade humana, para além dos que sempre se verificaram, mas, agora com muito mais força e alcance social, na cultura, no artesanato e em todas as artes.

Se há tribos que preferiram retornar ao recolhimento e à clausura dos antigos costumes ancestrais, bem longe dos “brancos”, e são respeitadas e defendidas em seus direitos, há outras que preferiram engajar-se nos processos políticos, produtivos e sociais vigentes.

Assim, também na política há muito deixou de ser novidade na Venezuela a presença de indígenas na Assembléia Nacional, nas assembléias estaduais e municipais, em cargos por nomeação ou por eleição, desde prefeituras a postos de mando em ministérios, órgãos públicos, entidades e empresas estatais e privadas.

Todas estas informações este gazeteiro obteve nos veículos de comunicação alternativos e apoiados pelo governo bolivariano que hoje alcançam, com enorme credibilidade, a grande maioria da população do país. Destes veículos, que crescem e proliferam com velocidade impressionante em todas as mídias, participam muitos profissionais de origem indígena. Das pequenas rádios comunitárias até a grandiosa TeleSur eles estão lá, em muitos casos em importantes papéis. Há até, diariamente, um noticiário nacional exclusivo para as comunidades indígenas numa das mais importantes emissoras de TV do governo (Noticero Indígena/Vive TV). Não raro, o próprio presidente da República, na transparência de cadeias nacionais de rádio e televisão, veicula as mais importantes decisões dos poderes públicos, entre elas as relativas aos povos originários.

Não é que todos os problemas tenham sido resolvidos, longe disso. Mas lá a questão indígena já faz parte da identidade nacional e está de tal forma assimilada no contexto da política e da cultura que disputa prioridade, em pé de igualdade, com as demais questões sociais (saúde, educação, habitação, etc), relegadas por mais de meio século de descalabros administrativos, e a maioria do povo venezuelano ostenta grande orgulho de suas origens indígenas e afrodescendentes. Muito diferente daqui, onde tais questões são matérias restritas a antros de “antropossábios” e “antropólogos-de-índio”, e que, para a sociedade como um todo, têm quase o mesmo peso das questões ligadas a OVNIs e extraterrestres.

Apenas como exemplo, numa leitura rápida da Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999, lê-se coisas assim:

Capítulo VIII - Dos Direitos dos Povos Indígenas
Artigo 119. O Estado reconhecerá a existência dos povos e comunidades indígenas, sua organização social, política e econômica, suas culturas, usos e costumes, idiomas e religiões, assim como seu habitat e direitos originários sobre as terras que ancestral e tradicionalmente ocupam e que são necessárias para desenvolver e garantir suas formas de vida. Corresponderá ao Executivo Nacional, com a participação dos povos indígenas, demarcar e garantir o direito de propriedade coletiva de suas terras, as quais serão inalienáveis, imprescritíveis, inembargáveis e intransferíveis de acordo com o estabelecido na Constituição e na Lei.

Na Lei Orgânica dos Povos e Comunidades Indígenas da Venezuela, vemos:

“Artigo 5. Os povos e comunidades indígenas têm o direito a decidir e assumir de modo autônomo o controle de suas próprias instituições e formas de vida, suas práticas econômicas; sua identidade, cultura, Direito, usos e costumes, educação, saúde, cosmovisão; proteção de seus conhecimentos tradicionais; uso, proteção e defesa de suas terras e, em geral, da gestão cotidiana da vida comunitária dentro de suas terras para manter e fortalecer sua identidade cultural. Os povos e comunidades indígenas têm o direito de participar na administração, conservação e utilização do ambiente e dos recursos naturais existentes em suas terras.”

Ou, na Lei de Idiomas Indígenas, recentemente aprovada na Assembléia Nacional:

“(...) são idiomas oficiais (da Venezuela) o castelhano e os indígenas, tais como, kapón (akawayo), amarúa, añú, arahuaco, ayamán, baniva (baniwa), bare (barí), chaima, arekuna, taurepan, chase (piapoco), puinave, pumé, sáliva, sanemá, sapé, timote, uruak (urutani), piaroa, mopuoy (mapoyo), warekena, warao, wayuu, yanomami, yabarana y yukpa.”

Por outro lado, é lastimável a comparação com as leis brasileiras de mesmos níveis e pertinências, disponíveis no site da FUNAI (aliás, uma vergonha de site).

Ainda estamos nos tempos de “as terras indígenas são propriedade da União”, ou, “cabe ao Congresso Nacional decidir sobre a exploração econômica das terras indígenas”, ou, num artigo oculto que poderia ter a seguinte redação: “os membros do Congresso Nacional serão escolhidos pelos grandes grupos financeiros e empresariais privados, de preferência transnacionais; ao povo caberá votar, obrigatoriamente e quando para isto for convocado, nos nomes de uma lista que lhe será oferecida.”

Se Tiradentes e seus companheiros da Inconfidência Mineira conhecessem a nossa atual legislação para os povos indígenas, eles teriam mais um motivo para a revolta.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com/)

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