Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar para mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o céu. (...) Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, tem; tem palavras e tem sermões; e mais, muito bem ouvidos. (...) E quais são estes sermões e estas palavras do céu? - As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. (...) Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: -- estrelas que todos vêem, e muito poucos medem. (Padre Antonio Vieira – excerto do Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real, no ano de 1655)
Por uma cultura comunicacional
Retomando o assunto da última Gazeta, trava-se na Venezuela uma guerra midiática de importância capital para todos nós, latino-americanos ou não. Entre os novos meios de comunicação que se vão inaugurando na revolução bolivariana capitaneada por Hugo Chávez, propositalmente não citei, para deixá-la exclusiva neste artigo, a TVes – Televisora Venezolana Social, que acaba de completar seu primeiro ano de existência e é a última e mais radical conquista revolucionária nesta guerra.
Ela se apresenta como “filha da Revolução” e surgiu para a pioneira e complexa missão de substituir a famigerada RCTV (Rádio Caracas Televisión) que, desde 1958, ocupava a faixa mais nobre do espectro radioelétrico daquele país (Canal 2), sempre com o maior índice de audiência nacional.
Este gazeteiro acompanhou a evolução daquele atribulado mas importantíssimo momento histórico do qual fez registros que organizou em livro, ainda inédito, intitulado A Guerra Midiática na Venezuela.
Ressalta daqueles fatos ocorridos no ano passado a intuição de comunicador inato de Hugo Chávez, que já se demonstrara anteriormente pelas nomeações dos dirigentes dos novos veículos de comunicação revolucionários.
Ao criar a TeleSur (2005), ele nomeou para dirigi-la um experiente e competente profissional de comunicação, Andrés Izarra, que se havia demitido da RCTV por ter rompido com os esquemas mafiosos da mídia hegemônica e denunciado o papelão que esta exerceu durante a tentativa de golpe de Estado, em 2002. Hoje, Izarra, além de diretor da TeleSur, é também o seu ministro das Comunicações. As estatais VTV – Venezolana de Televisión – e RNV – Rádio Nacional de Venezuela – são sempre dirigidas por veteranos jornalistas comprometidos com o processo revolucionário. A Vive TV (fundada em 2003) foi entregue a uma intelectual-jornalista (Blanca Eekhout) com larga militância na mídia de resistência, em especial, as TVs Comunitárias.
Em maio de 2007, era grande a espectativa sobre quem Chávez nomearia para dirigir a pioneira e histórica TVes, de longe e por inúmeras razões, inclusive de repercussão mundial, o mais audacioso empreendimento comunicacional da revolução bolivariana.
Assim, caiu como uma bomba, desconcertando setores de “esquerda” e de “direita”, endógenos e exógenos à revolução, a nomeação de Lil Rodriguez.
Escritora, pesquisadora e jornalista de cultura, com autoridade reconhecida internacionalmente em música e dança latino-americanas, Lil Rodriguez é dessas personalidades fortes que se regem pela total independência e radicalidade de seus trabalhos e idéias, não se vinculando a correntes e grupos nem se comprometendo com estratégias e jogadas de poder. Se vivesse no Brasil, seria, com certeza, considerada “maldita” pelos nossos mandarins da cultura. É também produtora independente e, quando foi chamada a assumir a TVes, escrevia, dirigia e produzia Sones y Pasiones, um musical para televisão que já se colocava entre os favoritos da TeleSur.
Debaixo do pau comendo à “esquerda” e à “direita”, ela assumiu o pepino histórico declarando coisas assim:
“Eu não acredito nesta avaliação classista de público A, B, C e D, todo mundo tem o mesmo direito a ver um bom programa de televisão.”
“Eu não me considero nenhuma especialista em televisão, mas estou disposta a trabalhar duro e com um sentido comum neste novo e inédito experimento de democratização, porque aposto no meu país e conheço a criatividade do nosso povo.”
“Queremos que nossos espectadores desaprendam a ver televisão e voltem a aprender conosco. Acreditamos ser vital para o país que os venezuelanos possam encontrar-se com uma TV venezuelana de verdade, por seus conteúdos e estética. Queremos uma TVes cada vez mais original, autenticamente venezuelana e plural: sem violência, sem apelações, sem vulgaridade, enfim, sem toda essa agressão à dignidade humana.”
“É preciso mudar o atual formato de jornalismo televisivo, em que a cultura é editada como matéria em apêndice, ao final da edição, sobre a qual se vão sobrepondo créditos e titulações de encerramento. Nosso perfil informativo vai dar prioridade à cultura e ao espetáculo. Trataremos de promover nossos artistas nacionais e latino-americanos, de informar, não sobre suas vidas privadas, mas sobre suas obras e conquistas artísticas.”
Assim, no comando da emissora de maior alcance gratuito e direto no país (em várias regiões mais distantes e fronteiriças é a única TV que pode ser sintonizada) e em substituição à que até então reinava nas telas dos televisores como campeã absoluta de audiência, aquela cabocla vem peitando todos os desafios, preconceitos, discriminações, sabotagens, boicotes e rasteiras que contra ela vêm sendo perpetradas por todos os setores adversos e reacionários às mudanças de statu quo, tanto dentro como fora dos espaços de poder da Revolução. Tantas e tais foram essas pressões elitistas que Chávez, poucos meses atrás, chegou a titubear: queixou-se publicamente dessa “TVes que ninguém vê”. Logo voltou atrás; as bases retrucaram (e lá elas têm voz – e como!): - “Deixem a Lil fazer o que ela está fazendo”, bradou a voz do povo nos ouvidos sensíveis do Comandante. E não se fala mais nisso.
E lá ela permanece, sem a menor preocupação com os “índices de audiência” (que os inimigos afirmam ser “muito baixos”), já com uma grade 70% ocupada por produtores nacionais independentes (que se somam a mais de 300 atualmente), lançando a primeira novela do mundo que tem uma negra como personagem principal, mudando tudo o que até hoje parecia consagrado e imutável em termos de linguagem televisiva, desde o jornalismo até as coberturas esportivas: - “Queremos que nossos atletas nas Olimpíadas de Pequim sintam o Estado venezuelano, e que seu país os apóia, e, não, encenar o show de figuras européias e norte-americanas, que é o que seguramente farão as emissoras comerciais” (a Venezuela está eufórica nestes jogos, pois registrou o recorde histórico de participação com 108 atletas classificados – antes da revolução, a média era abaixo de 30 -, e agora ingressa no seleto grupo das 20 maiores nações olímpicas com delegações de mais de 100 atletas).
A história coloca Lil Rodriguez e a sua bravura em posição-chave na mudança radical do discurso audiovisual televisivo que estamos assistindo pioneiramente na Venezuela. Uma mudança que libertará enfim o audiovisual televisivo dos grilhões do pattern (padrão) comercial-global-manipulador, apresilhado aos “índices de audiência” (conversaremos sobre este pattern na próxima Gazeta). E o fará ingressar numa nova era que será marcada pelo abandono das fórmulas autistas e mecanicistas de conquista de audiência e venda de bugigangas e pela entronização de uma cultura comunicacional, de caráter nacional, direcionada ao espírito e à humanização libertária do espectador, sem pretendê-lo preso à poltrona nem dominado pelo aparelho televisor.
Algo que, na linguagem audiovisual de comunicação para as massas, só o cinema pôde experimentar, com alguma semelhança e em essência, na primeira metade do século 20. É a nova ordem de realização, emissão, captação e fruição do discurso audiovisual e, tal como nos ensinou Padre Vieira há 343 anos, “é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor”.
Abraços
Mario Drumond
Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)
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