Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de e-meio 8 (10/10/2007)

Alberto “Korda” Diaz e a “foto do Século”

Sobre “Che” Guevara, por mais já se tenha dito, escrito e publicado – li que é a personalidade mais biografada do Século 20 -, sempre surge algo novo, para além de repetitivas homenagens e manifestações pró e contra de oportunismo midiático, à caça de público e à impossibilidade de se publicar a verdade.

Nunca faltam caducos difamatórios anti-comunistas, assinados por foliculários pré-pagos e publicados em veículos de publicidade cada dia mais desorientados e desesperados pelas perdas de influência junto ao público pagante e não pagante. São grunhidos inúteis, é como se um turista idiota achasse que ao jogar lixo nos sopés do Himalaia pudesse macular a alvura das neves que se eternizam nos píncaros do Everest, e diminuir sua majestade.

No caso de Guevara, mais alto e mais forte que tudo quanto se há escrito e publicado sobre ele, fala uma imagem: a “foto do Século”, e muitos assim a denominam, capturada pelo fotógrafo cubano Alberto Diaz, o “Korda”, tal como assinava seus trabalhos nos anos 60.

Korda, como todo bom fotógrafo, sabia que nem sempre é o fotógrafo que escolhe a imagem de suas fotos. Muitas vezes, e essas são as melhores fotos, é a imagem que escolhe o fotógrafo, mas ele tem de estar lá, consciente, bem preparado e bem equipado, no lugar certo, na hora certa e no ângulo certo. Em 1960, Korda registrava a multidão que se manifestava no porto de Havana em protesto contra um dos primeiros dos quase 6.500 atentados terroristas que a CIA cometeu contra Cuba, desde a Revolução: a explosão do cargueiro francês “Le Coubre”, no porto de Havana, lotado de gente, que matou mais de cem pessoas e feriu e aleijou outras centenas. No centro da primeira fila, todos de braços dados como elos de corrente a puxar a multidão, vinha o Comandante “Che” Guevara.

Num dado momento, “Che” subiu numa tribuna improvisada e a multidão silenciou - o Comandante vai falar! Foi então que Korda fez com sua Leica dois cliques enquadrados em portrait, um horizontal e outro vertical. Nem de longe imaginou que fora justamente ali o fotógrafo escolhido pela imagem que lhe daria a autoria da “foto do Século”.

Sete anos depois, com a notícia da morte de “Che”, um editor italiano consulta a Korda se não teria no arquivo uma boa foto que pudesse editar num poster em homenagem ao jovem revolucionário assassinado. Korda, ainda sem saber disso, tinha a “foto do Século”, por ele escolhida, entre os dois portraits, o de enquadramento horizontal. Não cobrou nada pelo uso da foto, nunca cobrou, nem permitiu que se cobrasse um centavo pela publicação dela, desde aquele poster até a sua morte, em 2001, já como celebridade mundial pela autoria da “imagem mais reproduzida no mundo”, título que até então, há mais de quatrocentos anos, era exclusivo de A Última Ceia, de Da Vinci.

Algumas das infinitas reproduções do célebre portrait de “Che” Guevara adornam hoje as paredes da Centro Oftalmológico da Missão Milagro, em Santa Cruz, na Bolívia. Aliás, todos os centros médicos cubanos espalhados mundo afora exibem o mesmo portrait, tirado por Alberto “Korda” Diaz, numa justa homenagem ao jovem médico argentino, nele retratado, que um dia sonhou e idealizou essas clínicas populares que agora se tornaram grata e bem sucedida realidade.

Mas no Centro Oftalmológico de Santa Cruz, há poucos meses, deu entrada um ancião cego, com sua bengala, e, como muitos das centenas de bolivianos pobres que vão diariamente àquela clínica, vinha conduzido pelo filho. O ancião chama-se Mario Terán.

Quem é Mario Terán? É justo o homem que, em 1967, foi escolhido pelos agentes da CIA, encarregados da “Operação Bolívia”, para fuzilar “Che” Guevara, preso, algemado e amarrado dentro do prédio arruinado de uma escola da aldeia La Higuera, no interior da Bolívia. Terán, então sargento do exército boliviano, foi escolhido para o serviço sujo por sua notória falta de escrúpulos e por seu permanente estado de embriaguez alcoólica. Indisciplinado e sem compustura, tremia com o fuzil diante de sua vítima, de quem teve de ouvir firme e ríspida repreensão antes que disparasse:

- Em forma, soldado! Você vai matar um homem!

A operação dos olhos de Terán, totalmente gratuita, foi bem sucedida graças à competência dos médicos cubanos e à excelência tecnológica da clínica, e, depois de longos anos de escuridão, os novos olhos de Terán deram com a luz dos olhos do homem que assassinou, cuja força incisiva e radical naquele instantâneo é, em minha opinião, a principal qualidade e a essência mesma da “foto do Século”.

Naquele momento, Terán deve ter ouvido o som viril da voz de “Che” Guevara, voz da qual jamais se esquecerá, ainda que a tenha ouvido uma só vez há exatos quarenta anos:

- Em forma, soldado! Viva a Revolução!


“Deixe dizer-lhe, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade. (...) Todos os dias temos que lutar para que esse amor à humanidade vivente se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo, de mobilização.” (Ernesto “Che” Guevara, Socialismo e Humanismo em Cuba)


Abraços

Mario Drumond