Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de carta 2 (11/9/2007)

Amigos, começo retomando o assunto da Gazeta 1:

EUA insiste em derrubar “el índio de mierda”

Ontem (10/9/2007) os jornais argentinos advertiram para o incremento das agitações paramilitares em território brasileiro fronteiriço com a Bolívia, sob os auspícios da CIA, em continuidade ao “Plan pra tumbar el índio de mierda”, plano que agora atende também pelo nome de “Plan Nación Cambo”. Falam, inclusive, que Washington já admite um cenário de guerra civil. As TVs do governo e da resistência na Venezuela dedicaram boa parte de seus noticiários e programas de opinião ao mesmo assunto. Essa agitação paramilitar os venezuelanos já conhecem há oito anos, na fronteira com a Colômbia, país em que os EUA levam a cabo o frustrado “Plan Colombia”, destinado a derrubar Hugo Chávez desde que este pisou pela primeira vez, como presidente, o Palácio Miraflores. Para a imprensa brasileira a América Latina não existe e é possível que muitos dos nossos jovens universitários pensem que a Bolívia é vizinha ao Afeganistão.

A TeleSur vêm cobrindo com o rigor do melhor jornalismo o movimento de resistência indígena-camponês na Bolívia que, desde domingo, superlotou a cidade de Sucre com o ingresso de mais de 50 mil pessoas que deixaram aldeias e lavouras para proteger o seu Presidente e a Assembléia Constituinte. Calcula-se que mais duzentos ou trezentos mil deles movem-se, a pé, a cavalo, em charretes, ônibus e carrocerias de caminhões, em direção a Sucre, oriundos de todas as províncias, as mais remotas. “Essa constituição tem nos custado quinhentos anos de sangue” – diz uma camponesa que caminha entre a multidão pelas estradas daquele território milenar. “Non passaron” – adverte um homem agasalhado num colorido poncho, exibindo a lâmina afiada de sua foice.

Evo Morales tem a seu favor um forte e bem organizado movimento popular que foi capaz de derrubar quatro governos neoliberais e levá-lo ao poder. Não traiu o movimento e, seguindo os passos de Chávez, tão logo assumiu, deu início aos processos de mudanças e convocou a almejada Assembléia Constituinte, que vem sendo sistematicamente boicotada por todas as forças reacionárias da Bolívia e do Brasil, sob a coordenação de Washington. O que Morales não conseguiu ainda foi a lealdade das forças armadas da Bolívia, tradicionalmente venais e corruptas, quadro que vem se modificando aos poucos pela “ingerência da Venezuela”, como insiste a direita. A de Washington pode, e são os dólares de lá que sempre alimentaram a venalidade castrense no país e, de resto, na América Latina toda. A diferença agora é que Chávez também tem dinheiro e essa gente vende a pátria na Embaixada dos EUA para depois vender as informações aos agentes venezuelanos infiltrados nas forças armadas da Bolívia, no que acham bom negócio, onde crêem que ganham duas vezes. O destino dessa gente, quando não é o ingresso antecipado ao cemitério, acaba sendo Miami. Mas os gringos só tem os dólares enquanto Chávez tem mais que dólares, tem malandragem. E, junto a Morales, tem também o seu “Plan”.


O nosso “11 de setembro”

Hoje, no Chile, a polícia reprimiu brutalmente o amplo e massivo movimento popular quando fazia a tradicional homenagem a Salvador Allende, no 34º aniversário de seu assassinato. O pinochetismo ainda manda e desmanda naquele país, infelizmente.

O estranho nisso é que a presidenta do Chile, Michelle Bachelet, que tomou posse ano passado, é filha de um general que por ter sido leal a Allende foi assassinado pela ditadura Pinochet, além de ela mesma ter sido prisioneira e violentamente torturada pela boçalidade sem limites daquela ditadura. Com a sua eleição, esperava-se que o Chile iria, enfim, respirar os bons ventos das mudanças.

Porém, desde que assumiu o governo, Bachelet têm revelado um comportamento que nos faz lembrar o da personagem de Charlotte Rampling no célebre O Porteiro do Noite (Il portiere di notte) - clássico do cinema italiano dirigido por Liliana Cavani -, em contracena com o torturador nazista, interpretado genialmente por Dirk Bogarde. Parece que as sessões de tortura enquistaram na torturada uma doentia paixão por seus torturadores. Quando vi o filme pela primeira vez (acho que na década de 60 ou 70), me lembro de críticos e psicólogos analisando e tentando explicar o fenômeno. Alguns diziam que não era tão incomum quanto se imaginava.

Dona Bachelet, dona Bachelet... não era isso que o povo esperava!


Segue o “acordo humanitário” mediado por Hugo Chávez, entre as FARC e o governo da Colômbia

A imprensa não menciona isso, mas é minha opinião que a devolução dos cadáveres dos onze deputados sequestrados pelas FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), movimento guerrilheiro que persiste há mais de 50 anos naquele país vizinho, é um passo importante nas dificílimas negociações a que se propôs Hugo Chávez como mediador convidado da disputa entre as FARC e o governo da Colômbia, desde sempre nas mãos das oligarquias, dos paramilitares e narcotraficantes servis a Washington. As duas partes em conflito, sem chances de vitória de uma sobre a outra, são forças até agora irremovíveis em suas posições, ao longo de inúmeras tentativas fracassadas de acordo em quase uma década.

Ah, o leitor brasileiro não está a par dos “onze cadáveres”? É o assunto principal de quase todas as mídias mundiais, menos as daqui e das que aqui nos chegam, por quê será?

Com certeza, o leitor não se importará se nos alongarmos num resumo histórico que pode nos ajudar a superar essa desinformação.

Em 2002, uma ação guerrilheira ousada e bem sucedida das FARC, incluindo cobertura completa com câmeras de vídeo (que deu um bom documentário – “de ação”- com grande sucesso de audiência e divulgado mundialmente), logrou o sequestro de 12 (doze) deputados da província de Cali, na Colômbia. A tática de sequestros fora adotada pelas FARC uns cinco anos antes, em resposta à ajuda maciça de Washington às forças do governo, o que provocou grande desequilíbrio na luta e prisão de muitos guerrilheiros.

É, pois, uma tática da chamada “guerra assimétrica”. Os sequestros incrementam recursos à guerrilha, quando há resgaste, e amplia seu poder de barganha, daí porque os sequestrados são escolhidos à dedo entre pessoas ricas, famosas e envolvidas com o governo, incluindo militares, políticos, empresários e agentes estrangeiros. Entre os sequestrados há, por exemplo, três agentes da CIA e a senadora e candidata à presidência da Colômbia, Ingrid Betancourt, sequestrada em plena campanha (2002) e que, além de jovem e bonita, é francesa-colombiana. Há quem esteja em poder da guerrilha há quase dez anos, enquanto se processam intermináveis negociações. Com os 12 deputados, a guerrilha mantinha, até julho passado, cerca de 60 reféns, e o governo detém mais de 500 guerrilheiros presos.

As famílias dos sequestrados acabaram se constituindo num movimento social de gente rica e poderosa, e as famílias dos prisioneiros num movimento social de gente pobre. Os dois movimentos superaram as diferenças de classe e criaram forte movimento de pressão para um acordo humanitário que resolvesse a questão de uma só vez, e abrisse o caminho para a pacificação da Colômbia. Essas famílias foram a todas as instâncias nacionais e mundiais, até às portas do inferno, em busca de uma solução. E descobriram que o maior problema delas é que a guerra sempre é um grande negócio capitalista.

A situação ficaria mais complicada quando o presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, ligado a paramilitares e narcotraficantes, pediu a seu amo, George Bush, que incluísse as FARC na lista de “grupos territoristas inimigos da comunidade internacional”, o que encostou as FARC numa posição incômoda e acirrou a crise, dificultando, é óbvio, as negociações em curso, inclusive as conduzidas em países como Suíça, Alemanha, França, Espanha e em vários organismos internacionais, levando-as todas ao fracasso.

Em 18 de julho deste ano, um comunicado das FARC abalou o mundo com o registro da morte de 11 dos 12 deputados de Cali sequestrados, numa escaramuça com paramilitares do governo, onde acusa o governo Uribe de não ter considerado a vida dos reféns durante os combates. Uribe retrucou acusando as FARC de assassinar barbaramente os reféns. Não colou porque ninguém acreditou na eliminação gratuita de preciosos reféns conservados por tão longo tempo. Desta vez foram o governo e os EUA que ficaram em posição difícil. Investigações independentes revelaram o envolvimento de paramilitares ingleses na desatrosa escaramuça, e confirmaram a versão das FARC.

Abaladas com uma notícia dessas, depois de mais de cinco anos de expectativas e azares, as famílias dos falecidos reivindicaram os cadáveres, mas as FARC fizeram exigências para entregá-los, sobre as quais o governo Uribe não transigia. As famílias de todos os sequestrados então se uniram às dos falecidos, retomaram o movimento e, numa bela cartada política, mandaram às favas as questões ideológicas. Por intermédio da senadora colombiana Piedad Cordoba, que apesar de ser de oposição foi nomeada por Uribe “facilitadora” das negociações do governo com as FARC, procuraram Hugo Chávez.

Isto significa que aquelas famílias, com certeza as maiores entendidas do assunto, consideraram que Chávez será talvez o único líder de expressão mundial capaz de dar solução ao imbróglio e terminar com seus sofrimentos. Se Chávez aceitou a mediação é sinal de que sabe resolvê-la, o que, aliás, interessa à Venezuela e a seu governo. Conhece o histórico de fracassos, mais bem o último, do presidente francês, Sarkosy, em que interesses contrários à solução tentaram envolvê-lo e desmoralizá-lo. Tem boas relações com as FARC e seus comandantes Marulanda e Raul Reyes, e por isso é acusado de financiá-las, o que pode até ser verdade mas ninguém obteve uma só prova, nem indícios.

Há cerca de um mês, quando Chávez recebeu as famílias em Miraflores em evento solene transmitido por TV, nem a questão da devolução dos cadáveres tinha horizontes de solução à vista. Coube a ele, como sempre “de surpresa”, dar o pontapé inicial. Ali mesmo, na reunião em Miraflores e diante das câmeras, anunciou o indulto de cinquenta dos mais de cem paramilitares colombianos que estavam presos na Venezuela por tentativas de assassiná-lo. Com o perdão, o mediador dava o tom da ação: ceder, conceder, não haverá solução sem que se abra mão de alguma coisa.

Na semana seguinte, Chávez foi a Colômbia onde entregou os indultados às suas famílias agradecidas (eram todos jovens que foram usados como bucha-de-canhão), encontrou-se com as famílias dos prisioneiros e dos sequestrados, com as oposições a Uribe e, em ato oficial, manteve longa reunião com Uribe depois da qual deram ambos entrevista coletiva conjunta para a imprensa mundial, que foi transmitida ao vivo. Nessa entrevista, Chávez demonstrou sua incrível habilidade diplomática e soube conquistar o povo colombiano, enchendo-o de esperanças de paz. Acuado, diante das câmeras e do próprio povo que diz governar, Uribe não teve outra saída senão endossar tais propósitos. Mas, por detrás, ele, seus amos e asseclas, todos interessadíssimos na permanência ad infinitum do conflito, trataram de jogar os bois na linha.

Mal Chávez deu as costas e voltou à Venezuela, já Uribe ordenava violenta escalada militar contra as FARC, que matou dez guerrilheiros, entre eles o Comandante Negro, um dos principais líderes do alto comando da guerrilha. No plano do discurso, Uribe resolveu radicalizar e fez uma série de declarações de forte beligerância, sempre qualificando a guerrilha como grupo terrorista. Mas, aí veio o inevitável. Pesquisas de opinião acusaram súbito aumento no conceito de Chávez junto ao povo colombiano, que é permanentemente bombardeado pela mídia hegemônica a denegrir a imagem dele, e uma queda drástica no conceito de Uribe. A pressão foi tal que atingiu a imprensa reacionária que, se quisesse vender jornais, tinha de apoiar as teses pacifistas de Chávez. Uribe não teve outra saída senão aceitar as condições das FARC para a entrega dos cadáveres.

Domingo passado, enquanto a Bolívia vivia o furacão golpista, a Cruz Vermelha Internacional resgatou os onze cadáveres no local indicado pelas FARC e os levou para Cali. Neles vem inscrita a história verdadeira de uma tragédia que Uribe, seus amos e asseclas, tanto temem e por certo tentarão impedir que venha à luz. Mas será em vão. Chávez já pôs em movimento o rolo compressor da História.

Abraços, e até a próxima Gazeta.
Mario Drumond