Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de e-meio 15 (14/11/2007)

Paisagem de Curitiba

O jogo foi rápido, mas valeu. Lembrou-me um pouco as viagens que eu fazia no noturno Santa Cruz, quando morava em São Paulo. O trem ia pelos subúrbios paulistas o tempo todo, aquela feiúra poluída, era como se víssemos as cidades pelo lado avesso. Uma cenografia infernalmente noturna até a decida da Serra do Mar, já amanhecendo. Aí, era o refresco! Enfim, lindas paisagens rurais iluminavam e aliviavam nossas existências, pela janela da cabine-leito. Mas isto era por pouco tempo. Logo entrávamos na feiúra diurna dos subúrbios cariocas virados pelo avesso, até a estação da Central do Brasil.

Essa ida a Curitiba foi como o refresco da Serra do Mar. Uma passagem rápida pelo Brasil que queremos, por entre o Brasil que vivemos. Curitiba já se distanciou deste e caminha firme em direção àquele. Cheguei na madrugada e acordei cedo, sempre muito bem assistido pela gentileza que não pede nem espera gorjeta do pessoal do Hotel Lancaster, um bem conservado exemplo do requinte e da arquitetura da década de 40, onde Getúlio se hospedava quando ia por lá. Café da manhã com Beto Almeida, Iraê Sassi e a negra Maria Palmira, que estava lá para outro programa da TVE-PR. No carro da TVE, comecei a sentir a diferença e o alívio de uma paisagem urbana civilizada, sem pressa, limpa, com muitos ônibus e poucos carros, poucos edifícios altos e muito casario de boa qualidade. Íamos do centro para o bairro, até a sede da TVE.

Os estúdios da TVE do Paraná me deixaram boquiaberto, e olha que conheço muito estúdio de TV por este país afora. A maioria se assemelha a cortiços labirínticos, atravancados e cheios de gente apressada e sem educação. Mas a TVE-PR não, tudo rola numa melhor, na maior competência, e o monumental conjunto arquitetônico é arejado, amplo e bem servido de luz do dia. Dá vontade de trabalhar lá. O produtor do Brasil Nação disse-nos que a TVE-PR é mais espaçosa e mais bem equipada que a Globo. De fato, tudo lá impressiona, até o formato dos programas. Tive a honra e o prazer de debater com os professores Pedro Roberto Ferreira, da Universidade de Londrina, e Valério Arcary, da Universidade de Porto Alegre, e com o diretor da TV Comunitária de Brasília, Iraê Sassi, sob a condução de Beto Almeida. Uma hora e meia de debate! Três blocos de meia hora cada um! Quem já viu uma coisa dessas neste país? O assunto? A Revolução Russa e as revoluções do século 21! Nenhuma censura, nenhuma advertência prévia, nenhum “conselho-de-amigo”. Só não vale ser reacionário. Foi muito bom, nos deixou a todos muito satisfeitos, a ponto de sairmos juntos para um almoço-comemoração no Cascatinha, um restaurante italiano que fica dentro de um lindo parque do famoso bairro Santa Felicidade. Santa Felicidade! Comemos e bebemos como se a própria mamma estivesse nos servindo.

Retornei ao hotel e dei um pequeno e tranqüilo passeio à pé pelo centro da cidade, até a hora em que o carro veio nos buscar para levar-nos ao aeroporto. Perguntei ao motorista pelas favelas, onde estavam elas que eu não vira uma sequer? “Viraram bairros, respondeu-me. E, apontando um conjunto de pequenas casas à margem da avenida: - ali, por exemplo, havia uma das grandes. Ainda há favelas em Curitiba mas, estão todas em processo de urbanização”. Que viva Requião! – penso eu.
No aeroporto de Curitiba desfrutei de uma espera rara em minha vida. A bela arquitetura de vanguarda oferece uma vidraça imensa diante de um grupo de confortáveis poltronas das quais o passageiro, como num cinema, pode curtir a pista de cabo a rabo, tendo por fundo uma paisagem verde, infinita, fascinante, com montanhas azuladas no horizonte e um céu formidável. Fiquei ali um boa meia hora dividindo a atenção entre a paisagem magnífica, a música de um piano sensível que liberava partituras suaves de Debussy, o livro de Simon Bolívar com que Beto me brindou e a movimentação tranqüila das pessoas que circulavam à vontade pelo grande saguão, falando baixinho. Percebi que os letreiros e os avisos eram somente em português e espanhol. Bom sinal bolivariano, pensei. Ao ir à sala de embarque, passei por um pequeno palco onde o pianista executava, ao vivo e para todo o aeroporto, as músicas que, pensava eu, fossem de uma gravação que eu não conhecia. Aguardei que terminasse a música que tocava para cumprimentá-lo e agradecer-lhe.

Depois embarquei de volta ao caos do infernal transporte aéreo nacional para o mesmo sofrimento e a mesma penitência das conexões aeroportuárias que paguei na ida. Na ida, em Guarulhos, na volta, no Galeão, ambos parecendo gigantescas, barulhentas e imundas rodoviárias da década de 60, onde os passageiros purgam atrasos de três horas em média, servidos de banheiros fétidos e sendo assaltados em lanchonetes chinfrins. Sem falar das aeronaves sambadas que nos transportam, onde nos servem um pacotinho de amendoim e um copo de refrigerante para cada percurso.

A coroa nervosa ou o coroa nervoso, tanto faz.
A Europa continua a apresentar graves sintomas de esclerose continental. Outro dia, foi o navio negreiro aéreo francês, de nome Arca de Zoé, tentando raptar crianças do Chade, na África. Agora, na reunião dos presidentes de países íbero-americanos, que se encerrou domingo passado, em Santiago do Chile, foi a vez de Sua Majestade, o Rei d’Espanha, Don Juan Carlos etc de Bourbon, surtar, num súbito retorno ao passado colonial diante das câmaras do mundo, quando deu um inusitado “Cala a boca!” no que ele imaginou ser a sua vassalagem latino-americana, ali representada pelos indígenas Hugo Chávez (caribe), Evo Morales (inca) e Daniel Ortega (maia), que ousavam abrir a boca diante de Sua Majestade a falar de revolução e outras heresias. Bem que o premiê da Espanha, o Zapatero (que o Rei pensa que é o sapateiro dele) fez aflitos sinais para Chávez – que falava naquela hora, de um lugar de onde não podia ver Sua Majestade – como quem diz: “Vai com calma, que o coroa hoje está nervoso!” Fidel Castro disse que aquele dia, sábado, 10 de novembro de 2007, passará à história como o Dia da Verdade. Segundo ele, o “Cala a boca!” real foi um “Waterloo ideológico” e, “naquele instante, todos os corações da América Latina vibraram”. Furiosos e unidos pela indignação, por certo.


Web Cult

Meu amigo Sávio Grossi enviou-me um e-mail que, pela importância e a qualidade de informação, a Gazeta publica na íntegra:

Mário,
Passou por aqui – Belo Horizonte, perto da Venezuela – a teia de cultura. Não mergulhei fundo, fiquei no rizoma dos eventos, até porque a extensa programação – paralela e simultânea – exigia o dom da ubiqüidade. Aconteceram coisas importantes que bem mereciam o olhar do gazeteiro: audiovisual e práticas educativas na sociedade do espetáculo, olhares contemporâneos sobre cultura e educação, cultura livre e acesso ao conhecimento, mostra humanista de teatro, arquitetura vernacular, corpo pra que serve, varau grafitado, estética amazônica, farta mostra de filmes e documentários, espetáculos de teatro, música e dança, oficinas, happenings, plenárias, presença de comunidades indígenas e ciganas, diversidade (palavra da moda) e o escambau.

Foi o segundo encontro nacional dos pontos de cultura, nova aparelhagem instituída pelo ministério da Cultura, com o patrocínio da Petrobrás. Veio gente de todo o Brasil, inclusive o ministro Gil. O homem é generoso: dialogou por longas horas com os donos dos pontos de cultura no escaldante galpão da casa do Conde. Não faltou quem lançasse sua candidatura à presidência, proposição que o ministro nem acolheu nem rejeitou, sinal de que está topando o jogo. É de dar pena vê-lo, prolixo por natureza, tentando harmonizar sua retórica na dupla condição de artista de palco e ministro de governo. Falou em autonomia, em autogestão – “cada um faz o que quer e o que pode querer”, afirmou que a Sony e outras multinacionais estão democratizando a tecnologia digital, pela simples razão de que qualquer técnico tupiniquim competente em eletrônica pode abrir um celular original e fazer outro igual. Certamente nunca foi intenção da Sony democratizar o uso de seus engenhos, mas a pirataria, ou a apropriação indevida, continua sendo a grande arte e manha dos oprimidos.

Sobre os pontos de cultura, o jornalista e escritor Marcelo Rezende escreve no caderno “Cultura e Pensamento”, editado no bojo da teia: “Apropriar-se do espaço é toda uma questão para a estética e um desafio imperativo para a política”. E, citando Ligia Nobre: “As atuações dos movimentos sociais questionam a noção de propriedade, a retenção, a especulação imobiliária e as desigualdades de longa data de nossa sociedade”, pergunta como, nessa perspectiva, se pode imaginar o processo de apropriação dos aparelhos de cultura pelos artistas, produtores e agentes culturais.

Por tudo o que se viu, fica claro que a questão da cultura está hoje colocada nos termos da produção e do consumo. Como queria FHC (toc,toc,toc, lembram?: “O sistema é progressivo, ou progressista, como queiram, porque incorpora as massas ao consumo”), não existe sociedade, existe mercado. E as elites seguem dizendo que toda porcaria é fruto da má educação do povo.

Só não dizem que o lixo irreciclável não é responsabilidade única de quem consome, mas sobretudo das elites produtoras que despejam toneladas de supérfluos e outro tanto de propaganda de supérfluos sobre a massa consumidora. E não estou falando de quem produz sabonetes e automóveis, mas principalmente de quem se arvora a produzir cultura – lixo, muito lixo, feito por gente que não consegue ler um poema sem arrepiar os cabelinhos do cu.

Para dar fé à hospitalidade mineira, coube-me ciceronear os paraibanos Durval, Oto e Zé Guilherme (haicaista, cineasta, cantador), que babaram com o chouriço do bar do Careca e as bugigangas do mercado central.

Abraço,
Sávio

Ainda bem que Sávio cumpriu, para nós, o sacrifício dessa missão de entrar e sair da tal teia sem ser pego pela aranha tatanha que a fiou. Pelo que fiquei sabendo, Sávio parece ter perdido a cena final, em que Gil se viu perdidão quando alguém o questionou, em público, sobre a violenta perseguição policial às rádios e TVs comunitárias, neste governo. Ah, mas Gil é a favor de pirataria via Sony. Pois, sim! Só mesmo tomando umas com os paraibanos, muito merecidas, no bar do Careca. Porque este gazeteiro já perdeu a paciência para esses eventos chapa-branca. Não dá! Já não me cheiram bem nomes tais como “teia”, “rede”, “web”, isto é, armadilha, coisa que prende, cerceia, oprime, seja ela “progressiva” ou “progressista”. Usam até “cadeia” (de rádio e TV), quer dizer... tô fora! A Gazeta prefere a comuna, como a nossa pequena comuna de leitores-escritores, sem compromissos, sem burocracias, sem pressões nem imposições. “Só a antropofagia nos une! Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”



Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)