Coleção completa por Volume (anual)

Gazeta em forma de e-meio 17 (1/12/2007)

Eructações “erudictas” de la derecha

O desespero é evidente. Não sabendo mais o que fazer para que os povos latino-americanos de língua espanhola obedeçam a seus meios de comunicação, as cúpulas de la derecha mundial, incluindo o Pentágono, metem os pés pelas mãos, tentando, a cada dia, um novo recurso tático ou estratégico para “contrarrestar”, como dizem, o discurso poderoso de Hugo Chávez. É fracasso após fracasso, este gazeteiro já perdeu a conta dos tantos que já se deram somente neste ano. Um dos mais recentes vale comentarmos, por demonstrar o aberrante despreparo e a lambança dos “cérebros” dessas cúpulas de “idéias”, em particular quando os combates se dão onde não prosperam os poderes da arrogância, da prepotência, da força bruta ou do dinheiro. Os fracassos se dão nos campos eternos do saber, onde a Humanidade tem colhido os melhores frutos do conhecimento e as mais belas flores da consciência.

Pelo visto, os estrategos de la derecha enfim perceberam que de nada mais lhes valiam os desgastados clichês do tipo “livre-mercado”, “livre-iniciativa”, livre-isso, livre-aquilo, enquanto Chávez encanta as massas com longos discursos e pronunciamentos recheados de erudição histórica, doutrinária e revolucionária. Resolveram-se então por desenvolver também uma “doutrina” e a encomendaram, por certo, a uma agência de publicidade.

Não se preocupe o leitor, não vamos ao sacrifício nem à perda de tempo de ler as 98 páginas do papelucho de luxo que resultou de mais um frustrado brain-storm publicitário, que sai assinado por ninguém menos do que o Sr. José Maria Aznar, o mais bem sucedido picareta do neoliberalismo castelhano, e leva o pomposo e marqueteiro título de América Latina: una agenda de libertad (reparem que agenda virou palavra da moda, e está sendo usada a torto e a direito – mas, neste caso, só a torto).

Bastam-nos algumas resenhas bem escritas e publicadas em veículos sérios, como a do jornalista Marcos Roitman, do diário mexicano La Jornada. Roitman faz uma súmula do dito papelucho em suas teses básicas e simplesmente as expõe ao ridículo delas mesmas perante os leitores de língua espanhola, sem comentários.

Mas, infelizmente, o nível da imprensa em língua espanhola, em especial a de resistência, está muito acima da imprensa de língua portuguesa ou brasileira, além de ter abragência, alcance e audiência muito superior à nossa em relação à mídia hegemônica, que é igual em toda parte. Por isto esta Gazeta deve estender-se um pouco mais neste número, pois Aznar já disse que é amigo de FHC e de Lula e tem planos de vir ao Brasil. Com certeza, pretende nos brindar com sua “obra” doutrinária numa versão em nossa língua.

Vamos pela resenha de Roitman. Segundo o jornalista, os autores pretendem a América Latina como um subcontinente pertencente ao “Ocidente”, visto por eles não só como uma posição geográfica no mapa-mundi mas, também e principalmente, como uma definição ideológica. Para os autores e mentores dessa “doutrina”, “Ocidente” é um sistema de valores universais constituído por três “pilares”:

1 – As idéias nascidas na Grécia como superadora da monarquia de origem religiosa e mágica. Aparecimento da Pólis e da Ágora, a partir das quais se distinguem a ordem da natureza da ordem social. A noção de semelhança, de igualdade ante a lei e a idéia de liberdade.

2 – Os aportes de Roma, o direito, essencial para a Humanidade, delimita o que é seu e o que é meu. “Permite individualizar a vida, porque a propriedade já não se confunde com o magma comunitário”, dizem os autores. Assim se estende a idéia de “um direito superior, perfeito e imutável, um direito natural do qual o direito positivo não é mais que uma aproximação”.

3 – Os valores procedentes da tradição judaico-cristã, “cujo valor fundamental aos efeitos que aqui interessam é a idéia de compaixão, conceito que vai além da própria justiça da tradição romana”... donde se unem:
a) o relato bíblico da criação que faz irmãos a todos os homens;
b) a idéia do tempo linear e não circular que faz possível a idéia de progresso; e
c) a idéia da dignidade essencial do ser humano, universal.
São estes fatores necessários para possibilitar “que o ‘não matarás’ não fique restrito aos judeus, mas, válido para toda a Humanidade, algo que é completamente novo em comparação a outras civilizações, tanto no Antigo como no Novo Testamento”.

Ademais, sobre estes três pilares, reforçam os autores da peça, se assenta a idéia de persona: “ser livre, independente de qualquer construção política”. E, informa-nos o resenhista que, por artes de “birlibiloque” (sic), os autores dão um salto ao presente e extrapolam tais valores ao regime no qual sintetizam suas premissas: “a democracia liberal”.

Toda essa pompa pseudo-erudita já se derruba por si mesma, uma vez que foi justo o conteúdo descrito, ainda que de forma muito simplória, no terceiro “pilar”, a base ideológica que mergulhou o “Ocidente” na noite medieval milenar, e retrogradou o desenvolvimento humano do mesmo “Ocidente” a uma situação quase anterior ao da invenção da roda. Isto se dá desde a negação mesma dos dois primeiros “pilares”, na condenação e anatematização, como pagãs e pecaminosas, das “idéias nascidas na Grécia”, na restauração da “monarquia de origem religiosa”, nos desaparecimentos da Pólis e da Ágora, e no retorno aos castelos e feudos. Da mesma forma, “a noção de semelhança, de igualdade ante a Lei e a idéia de liberdade”, não podiam ter vigência plausível no período medievo-feudal. Também a dita permissão de “individualizar a vida” pelos conceitos do direito romano foi inviabilizada, uma vez que o tal “magma comunitário”, que talvez possamos entender como a vassalagem da época, assim como as terras que ocupava, eram propriedades exclusivas do respectivo senhor feudal ou monarca, eleito por Deus, ou melhor, pela Igreja Católica Apostólica Romana, herdeira ou usurpadora, dependendo de como a reivindicam diferentes correntes teológicas, da tradição judaica do Velho Testamento e, com certeza, a maior usurpadora dos ensinamentos de Cristo, que, mal ou bem compilados, traduzidos ou preservados, fizeram compor o Novo Testamento.

Por outro lado, o terceiro “pilar” nos faz retroagir precisamente ao período medieval em seus pontos mais obscuros (a Idade Média teve também suas luzes, mas não por via de tais “idéias”), uma vez que ignora, ou mesmo abole, a contribuição hindu, muçulmana, islâmica, árabe ao desenvolvimento do “Ocidente”. Foram os sábios muçulmanos que preservaram para o mundo “as idéias nascidas na Grécia”, que a “compaixão” judaico-cristã buscou destruir implacavelmente durante a Idade Média. Os publicitários do Sr. Aznar querem nos privar dos algarismos arábicos, ou indo-arábicos, e que voltemos aos algarismos romanos. Por eles, ficaríamos também sem o número zero, descoberta fundamental que os hindus deram à Humanidade. E também sem as universidades e as luzes da arquitetura e da sabedoria mouriscas que levaram os países da Península Ibérica a superar todos os demais do velho “Ocidente”, a ponto de colocá-los na vanguarda das navegações e dos descobrimentos. Já o “tempo linear” nos faz retroceder não a tempos anteriores ao da relatividade de Einstein, mas aos de antes da espiral de Vico (1668-1744) e da sua revolucionária Sciencia Nuova. Quanto ao Quinto Mandamento (“não matarás”), é possível que o mundo inteiro, por essa ou por outras muitas vias, já o tenha acolhido, mas é preciso avisar os atuais descendentes de Moisés, em Israel e nos EUA, de que ele permanece em vigor, pois são eles os governantes desses dois países e talvez os únicos que ainda insistem em desconhecê-lo e desobedecê-lo. E o fazem em níveis genocidas, muito superiores aos da época do bárbaro, pagão e odioso Molloch, da velha Cartago. Quanto à “idéia de persona”, o que restará dela nessas duas “democracias liberais”, podemos deduzir, será algo mais ou menos semelhante à idéia que seus governantes fazem dos habitantes do Iraque, Afeganistão, Líbano e Faixa de Gaza, para ficarmos só em exemplos bem recentes.

E é com essas “idéias” que, muito melhor entabuladas, já eram arcaicas nos tempos de Vespúcio e Las Casas, e com esses argumentos, cujos “pilares” não sustentam nem a si mesmos, que o Sr. Aznar arremete contra a América Latina exigindo de nossos países adesão (ou rendição) incondicional ao seu muito particular “Ocidente” e à tal “democracia liberal”, regime que, alega ele, condensa todas aquelas suas “idéias” na medida em que “elege seus governantes, limita as decisões a um Estado de direito, garante o direito à vida, a igualdade perante a Lei, as liberdades de reunião, associação e culto, a tolerância e o pluralismo”, e não sem esquecer que, “quanto à ordem econômica, ela se traduz na economia de mercado”. Um primor! Ao enumerar tantas qualidades, assinalam os autores do papelucho: “Ocidente se ergue como um patrimônio da Humanidade expandindo-se ao longo da história, e a América Latina é o fruto histórico dessa expansão desde os fins do Século XV”, donde “o mais relevante de tal incorporação de suas sociedades à idéia de ‘Ocidente’ se produziu mediante a extensão do cristianismo”. Como dizia o nosso querido Ari Barroso: “Durma-se com um barulho desses!”

Quer dizer, depois de nossos ancestrais trucidados, nossas riquezas saqueadas e de fornecermos as bases de conhecimento que erigiram o Renascimento europeu, o Humanismo, as utopias, o Iluminismo e quase todas as evoluções progressistas do pensamento que se deram na Europa, de Morus a Sartre, ainda somos “o fruto histórico” daquela Comédia que era a Europa medieval antes das “descobertas” e devemos tudo de “mais relevante” à “extensão do cristianismo” que assolou e tingiu de sangue todo o nosso continente. “Sem nós, a Europa não teria sequer a sua pobre Declaração de Direitos do Homem” – reclamou Oswald de Andrade.

Mas a coisa não pára aí. O Sr. Aznar, que se diz amigo de FHC e de Lula, percorre a América Latina para denegrir a imagem de Hugo Chávez repetindo as sucessivas mentiras da mídia hegemônica, da qual é prócer e porta-voz, mentiras que seus redatores varam noites para “criar”, uma após a outra, caindo todas elas rapidamente no descrédito mais absoluto, quando não no ridículo. Agora, abatido por tantas derrotas, não só as dele como as de seus pares e de todas as recentes versões dos Três Patetas produzidas por Washington e Hollywood, os “pit-yankes”, como os denomina Chávez, tenta substanciá-las nessa baboseira mal escrita que eructa aos quatro cantos e ainda defeca coisas como as seguintes:

“Porém, pela supremacia que adquiriu frente a outras civilizações, o ‘Ocidente’ se encontra ameaçado por aqueles que desejam retroagi-lo ao magma comunitário (que porra é essa, carajo!) do indigenismo e da barbárie. As experiências do Comunismo, para não irmos mais longe. Na América Latina houve ditaduras, totalitárias ou não, e repressão. Mas foram por curtos períodos de tempo. A aspiração tem sido sempre a de retornar a formas de governo democráticas. Sob este aspecto, o processo de inserção da América Latina ao ‘Ocidente’ tem sido imperfeito e incompleto; porém, por sua história e tradição, por seus aportes à criação, ao pensamento e à cultura, é uma parte dele. Sem embargo, agora toca-nos dar um novo impulso a ela para evitar que caia outra vez no indigenismo. O caminho é incorporar os países latino-americanos na modernidade, e isto passa por aceitar a agenda para a liberdade.” Puuuummmm!

Vamos aceitá-la, Sr. Aznar, mas só depois de o senhor aceitar que os venezuelanos têm toda a razão: o senhor é mesmo “aquele em que um substantivo se fez verbo”. Quanto à sua “modernidade”, sugerimos que quando vier ao Brasil traga as roupas e a armadura de Pizarro. Aí, fantasiaríamos FHC de vice-rei e Lula de índio (ou operário), e é bem provável que o trio seja aceito como destaque de alguma escola da classe B para o próximo desfile da Marquês de Sapucaí.

As causas dessas aberrações – que têm sido recorrentes, e esta não é a primeira e nem a segunda que este gazeteiro vem observando – se tornaram objetos de estudo na Venezuela, onde o fenômeno é muito mais aberrante que em qualquer outra parte do mundo. Psicólogos, estudiosos e autores de diversos artigos publicados no site Aporrea e outros veículos de resistência tratam o fenômeno como uma “dissociação psicótica da realidade”. Mas isto fica para uma futura Gazeta.


Abraços

Mario Drumond


Revisão: Frederico de Oliveira (para quem curte textos bons e bem escritos, recomendo o blog de Frederico – O Apito - no endereço http://www.thetweet.blogspot.com)

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